11 de março de 2021 | 05h00
As incessantes ondas que garantem o frescor do jazz trazem sempre cantoras excepcionais. Assim como no Brasil, a música popular norte-americana tem um de seus eixos mais sólidos na voz feminina e uma potência histórica que se retroalimenta e forma, para o bem e para o mal, um novo cenário a cada fluxo temporal. Como em um reality show, grandes vozes chegam e desaparecem com a mesma velocidade e poucas, realmente poucas, conseguem atingir o “estágio de assombro” de Veronica Swift.
Os pontos fora da curva, antes de surgirem na voz, já estavam na curta e intensa história de Veronica. Ela é uma garota de 26 anos nascida em Charlottesville, Virgínia, onde, em 2017, grupos de supremacistas brancos entraram em confronto direto com manifestantes antirracistas. Várias pessoas ficaram feridas e uma morreu depois que um carro avançou em direção a uma concentração de militantes contrários aos extremistas de direita. O ato se torna particularmente simbólico quando Veronica, branca, estabelece sua carreira sobre os paradigmas deixados por Ella Fitzgerald.
Seu pai era o pianista de jazz de Chicago Hod O’Brien, que tocou com Phil Woods, Freddie Hubbard e Lee Konitz, e a mãe é a cantora Stephanie Nakasian, que fez trabalhos com gente como Pat Metheny, Clark Terry e Philly Joe Jones. Assim que Hod morreu de câncer, em 2016, aos 80 anos, a indignação pela perda fez Veronica integrar uma banda de rock gótico chamada Vera Icon. “Eu precisava extravasar a raiva que sentia pela perda do meu pai”, afirmou, à época.
A raiva não foi mais forte do que aquilo que já estava em Veronica desde a infância. Depois de ver e ouvir pessoas como Annie Ross, Jon Hendricks e Paquito D’Rivera entrando e saindo de sua casa com um instrumento debaixo dos braços, ela abriu a boca para cantar e o que seus pais ouviram foi algo perto do fenomenal. A voz e o pensamento musical de Veronica não eram de uma criança.
Aos nove anos, ela lançou seu primeiro álbum nada infantil, Veronica’s House of Jazz, e saiu em excursão com os pais e com o grupo The Young Razzcals Jazz Project, com o qual tocava trompete. Aos 11, lançou seu segundo disco, It’s Great to be Alive, e se apresentou no Jazz at Lincoln Center, de Nova York. Mais tarde, em 2016, conquistou o segundo lugar na Competição de Jazz Vocal Thelonious Monk, ganhou datas no Birdland Jazz Club e então, em 2017, mudou-se para Nova York. Uma de suas maiores performances foram feitas ao lado de Wynton Marsalis e sua orquestra do Lincoln Center. O vídeo que pode ser visto no YouTube mostra o quanto Marsalis se diverte com seus scats, os improvisos criados por Ella Fitzgerald na distante era do swing dos anos 30 e adotados por Veronica como uma obsessão técnica.
Veronica Swift é mais especificamente uma cantora de bebop, um dos subgêneros sobrepostos do jazz que fez sua era de ouro nos anos de 1940. Sua voz de essência improvisadora funciona ora com a agilidade do estilo do saxofonista Charlie Parker, ora com a precisão do pianista Thelonious Monk. Um canto ágil que não perde cor nem acabamento quando assume o egocentrismo necessário dos voos solos. Mas, se deixarmos ela mesma explicar, talvez nada disso fique de pé. “O jazz tem tantas categorias de subgêneros que, por isso, deixou de ser uma forma de música popular. Quer você toque de forma tradicional ou moderna, é um estilo de vida comunitário, não um gênero musical”, diz ao Estadão.
Mas, ao escolher as palavras, ela também revela uma opção estética. Até os anos 1960, quando o free jazz chegou como forma de rebeldia contra a obrigação dos músicos em “sustentar o peso do passado”, e mesmo depois, nos 1980, quando o neoclassicismo dos young lions de Wynton Marsalis chegou para revalorizar os ancestrais, jazz era um livro de história em constante atualização. E assumir isso é assumir um gênero musical. “Estamos sempre honrando e sendo informados pelo passado do jazz. Mas, concordo que criamos em conjunto com outras pessoas e, por isso, somos inspirados por elas. O jazz está vivo, é algo que se respira.”
Assim como a descoberta de sua trajetória recente, é possível encontrar cantoras exuberantes como Camille Thurman, saxofonista de Marsalis convertida mais recentemente ao canto, Jazzmeia Horn, uma proeza de ascendência africana de 29 anos, e a de carreira mais jovem, Quiana Lynell, todas trazendo o peso da tradição de mais de um século em cada nota. Quiana nasceu no Texas mas se mudou logo para Baton Rouge, na Louisiana. Destacou-se como membro do coro da Igreja Episcopal St. James e ganhou elogios de Herbie Hancock, Patti Austin e Terence Blanchard. A base de seu canto, exposta no único álbum que tem até agora, A Little Love, passa pelo jazz depois de lutar para sair das amarras do gospel. Cantoras de sua geração, mesmo tendo o blues pulsando forte, sabem que precisam expandir territórios.
Veronica não gosta do termo “novo jazz”. “Estamos vivendo um revés temporário de circunstâncias com a pandemia, mas o espírito da música é o mesmo e deve ser constante. Jazz é o que você faz dele, desde que você honre o passado.” Essa devoção supostamente obrigatória ao passado dos músicos de jazz já foi estudada por pesquisadores como Joachin-Ernest Berendt. Ela segue falando sobre a pandemia e como o isolamento social pode influenciar na origem de uma expressão particular do jazz: “A pandemia fez muitas pessoas pensarem em como sustentar suas vidas se não puderem fazer isso musicalmente. Não posso falar pelos outros, mas talvez muitos estejam se voltando mais para arranjos, engenharia, produção musical e trabalhos com edição de vídeo. Não sei, mas, para mim, mantenho meu curso e continuo enriquecendo meu jazz e minha compreensão musical. Essa é a minha pista e devo permanecer fiel a ela!”. Missão, fidelidade, entrega, passado. Coisas de uma senhora jazzista de 26 anos.