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O short de bandeiras tem um valor afetivo especial para Ludmila e, hoje, é uma das peças preferidas de Julia: Maria de Fátima também compartilha o guarda-roupa com filha e neta |
Quando o assunto é guarda-roupa, sapatos, bolsas, acessórios e até aquela peça statement, com informação de moda, não costumam escapar de um ou outro empréstimo. É comum as filhas explorarem o armário das matriarcas; e irmãs ou primas montarem looks com as roupas umas das outras, quando elas servem para as duas.
Para além da praticidade do uso, esse hábito guarda carinho e acumula memórias. Compartilhar peças de roupa também faz parte de um movimento mais sustentável, baseado no reaproveitamento e no vestir-se com responsabilidade. Em vez de descartadas, elas rodam gerações e duram muito.
Os tênis são praticamente os mesmos, bolsas e roupas são compartilhadas no dia a dia. Já não se sabe mais o que é de uma ou da outra. Ludmila Goes, 36 anos, designer e artesã, e a filha Julia Goes, 15, dividem tudo. Julia se identifica com o estilo mais casual da mãe. Elas gostam, principalmente, de peças fluidas e coloridas. Mãe e filha têm o costume de sair parecidas e dividem o gosto até pelas mesmas estampas.
“É muito legal porque a nossa diferença de idade não é tanta, e nossas personalidades coincidem em vários pontos, então aproveitamos muita coisa uma da outra”, diz Ludmila. Cada uma usa a peça à sua maneira, o que possibilita criar vários visuais. Se Ludmila opta por uma imagem clássica, Julia torna o look mais jovial com alguns poucos ajustes.
A mãe de Ludmila e avó de Julia, Maria de Fátima, 68 anos, não fica de fora desse compartilhamento. Camisas, blusões, saias e calças rodam o armário das três. “Tem uma peça muito especial: um colar de ouro que passou da minha mãe para mim e, agora, para a Julia. Penso que joias, no geral, têm valor financeiro, mas também um valor sentimental enorme”, conta Ludmila.
Um short com bandeiras de vários países foi a peça que acompanhou Ludmila em uma viagem a São Paulo, em 2019, quando ela foi a diversos eventos culturais. Além de bater perna na cidade, essa foi a roupa que ela usou para ir do apartamento do namorado até o Mercado Municipal, a pé. “Queria muito conhecer a região. Foi uma viagem muito significativa para mim, em vários sentidos. A Julia usa essa mesma roupa no dia a dia agora.”
Números do fast fashion
O fast fashion é um modelo de produção pensado para suprir rapidamente uma demanda por roupas, com alta rotatividade de coleções e vendas a preços baixos, lógica comum em lojas de departamentos. Pesquisas mostram que, nesse ciclo, uma peça é guardada por somente 35 dias antes de ser descartada e usada, em média, apenas cinco vezes.
O algodão plantado requer grandes quantidades de água e pesticidas para dar conta do ritmo de produção; o poliéster demora mais de 400 anos para se decompor. Nos Estados Unidos, a estimativa é de que 90% das peças de vestuário vendidas sejam feitas justamente desses dois materiais.
E tem mais: o Programa da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) aponta que o volume de resíduos urbanos chegará a 2,2 bilhões de toneladas até 2025. Só no Brasil a estimativa de resíduos têxteis é de 175 mil toneladas/ano. Desse total, apenas 36 mil toneladas são reaproveitadas.
Prática sustentável
Coordenador do curso técnico de vestuário do Instituto Federal de Brasília, Adriano Bezerra pontua que resgatar momentos por meio das roupas se contrapõe à correria da contemporaneidade. Dar valor aos laços afetivos é importante em tempos tão efêmeros.
Mas, mais que isso, esse comportamento é importante para aumentar o ciclo de vida das roupas. Adriano explica que o conceito do upcycling, que é dar um novo propósito, com criatividade, àquilo que seria descartado, vem sendo cada vez mais discutido. Segundo ele, o movimento é necessário para rever os impactos negativos da indústria — o gasto de água para confecção de um jeans novo ou o uso de agrotóxicos nas lavouras de algodão, destinados à indústria têxtil, bem como do consumismo na moda.
“Precisamos assumir responsabilidade pelos materiais que compramos e, não muito tempo depois, descartamos”, ressalta. Não só o compartilhamento de peças, mas o aproveitamento delas como matéria-prima para outras criações também é opção para diminuir alguns dos efeitos da moda. Vale juntar retalhos para montar novas peças ou customizar e dar uma nova proposta à roupa.
Futuro
A estilista Fernanda Lorena avalia que não é preciso fazer mais roupas, dado todo o cenário fashion — poluente e carregado. Mas, sim, devemos dividir mais. Na família, não só as joias ou o vestido de noiva ou de debutante têm vez, embora esses sejam artigos tradicionais. As possibilidades são infinitas e, melhor ainda quando o compartilhamento faz parte do dia a dia.
A especialista pontua que tanto itens atemporais quanto peças do momento vêm ganhando espaço em negócios de aluguéis de roupas, on-line e físicos, e tornam a moda cada vez mais acessível. Segundo Fernanda, essa troca nas famílias e entre amigas é a essência por trás da economia compartilhada nesse segmento. A moda, com essa dinâmica, vem bebendo de negócios como Uber e AirBnb, que funcionam no esquema colaborativo.
“O consumidor do futuro não quer mais uma roupa da moda, mas uma roupa com propósito. Vem analisando e valorizando essa quebra de paradigma. Vai querer uma roupa que não passou por trabalho escravo, que não vira plástico quando jogada fora”, explica.