SÓ VOU DEBAIXO DE VARA – Miguezim de Princesa
Sou a febre da Esplanada,
Sou o istopô calango,
Sou a titela do frango
Por dentro da quiabada,
Sou noite malassombrada,
Sou doido metendo o pau,
Sou aluno do Mobral,
Ninguém zomba da minha cara,
Só vou debaixo de vara
Pra depor no tribunal.
Sou Adélio com uma faca,
Fingindo que sou maluco;
Quando faço o vuco-vuco,
Ouço o troar da matraca;
Eu sou o peito da vaca
Que o Centrão quer mamar,
A melhor coisa é capar
Pra ver se acaba a tara,
Só vou debaixo de vara
Se o tribunal me chamar.
Sou Bolsonaro nervoso,
Sou a voz de Sérgio Moro,
Sou pobre contendo o choro
Com tudo dificultoso:
Sou o auxílio faltoso,
Sou a análise fatal,
Sou a espera infernal
Dos 600, coisa rara,
Só vou debaixo de vara
Pra depor no tribunal.
Sou um cavalo-do-cão
Penicando no teu couro,
Eu sou o troféu de ouro
Que deram pra Seleção,
Sou a classe de Tostão
Do escrete nacional,
Fiz goleiro passar mal
Quando estava cara a cara,
Só vou debaixo de vara
Pra depor no tribunal.
Encontrei Celso de Melo
No beco da Guariroba,
Coisa boa é a maniçoba
Que eles servem no castelo,
Uma vara de marmelo
Não espanta general,
Só depois do carnaval
É que a gente dá as caras,
Só vou debaixo de vara
Pra depor no tribunal.
* * *
A grande dupla de poetas repentistas Geraldo Amâncio e Ivanildo Vilanova
* * *
O SERTÃO EM CARNE E ALMA
Ivanildo Vilanova
Uma tarde de inverno no sertão
É um grande espetáculo pra quem passa
Serra envolta nos tufos de fumaça
Água forte rolando pelo chão
O estrondo da máquina do trovão
Entre as nuvens do céu arroxeado
O raio caindo assombra o gado
Atolado por entre as lamas pretas
Rosna o vento fazendo pirueta
Nas espigas de milho do roçado.
Geraldo Amâncio
No sertão quando o chão está molhado
Corre água nas veias de um regato
Pula a onça da furna corre o gato
Um cavalo galopa estropiado
Um garrote atravessa o rio de nado
Uma cobra se acua com um cancão
A cantiga saudosa do carão
Faz lembrar o lugar que fui nascido
Entre as telas do filme colorido
Que Deus fez pra o cinema do sertão.
Ivanildo Vilanova
Quando é festa animada de São João
Nunca falta canjica nem sequilho
Pamonha, mingau, bolo de milho
Buscapé, estrelinha e foguetão
Cantoria, namoro, discussão
Quebra pote, corrida de argolinha
Padrinho de fogueira e a madrinha
Casamento matuto, samba e jogo
E a cabocla com o rosto cor de fogo
Tocaiando as panelas da cozinha.
Geraldo Amâncio
No sertão quando é bem de manhãzinha
Sertanejo se acorda na palhoça
Chama o filho mais velho sai pra roça
A mulher toma conta da cozinha
Faz o fogo de lenha e encaminha
Um guisado, angu quente ou fava pura
E depois de fazer essa mistura
Sai faceira igualmente uma condessa
Com um quibumbo de barro na cabeça
E vai levar aos heróis da agricultura.
Ivanildo Vilanova
No sertão a tarefa é muito dura
Mas se tem a colheita, a criação
Ferramenta da roça, produção
Uma rede, um Grajau de rapadura
Uma dez polegadas na cintura
A viola, o baú, uma cabaça
A tarrafa e o litro de cachaça
Mescla azul, botinão, chapéu baeta
Fumo grosso, espingarda de espoleta
E um cachorro mestiço bom de caça.
Geraldo Amâncio
A riqueza do pobre nunca passa
De um pote que mata sua sede
Uma enxada num canto de parede
Dois chapéus, um de palha, outro de massa
Um cambito tingido de fumaça
Uns dez filhos que tem sua aparência
Uma esposa que é mãe da paciência
Se chorar ou sofrer não se maldiz
E ele às vezes é muito mais feliz
Do que um rico ladrão de consciência.
Ivanildo Vilanova
É preciso ter muita paciência
Guardar milho num quarto empaiolado
Sustentar criação com alastrado
Numa terra que tem pouca assistência
Trabalhar no serviço de emergência
Esperando o inverno que não vem
Insistir, crer em Deus e tratar bem
Manter sempre a família tão unida
Do chão seco arrancar o pão da vida
Sertanejo faz isso e mais ninguém.
Geraldo Amâncio
No sertão quando o inverno não vem
Só se encontra desolação e mágoa
No riacho não vê-se um pingo d’água
Sopra um vento assombroso do além
Seca o tronco robusto do muquém
Cai a folha mais grossa, murcha a fina
Toda árvore murchece, se inclina
No calor do sol quente verga as costas
Parecendo um fantasma de mãos postas
No altar de uma seca nordestina.
Ivanildo Vilanova
No verão quando o sol se descortina
Se escuta o zumbido das abelhas
O balir melancólico das ovelhas
O dueto dos pássaros da matina
O bonito alazão sacode a crina
O vaqueiro aboiando chama a rês
Os cancões gritam todos de uma vez
Acusando a presença da serpente
No concerto de música diferente
Da orquestra sinfônica que Deus fez.
Geraldo Amâncio
E o traje do homem camponês
Quando sai para a festa ou para feira
É a calça de mescla, uma peixeira
Um paletó listrado de xadrez
Umas botas do couro de uma rês
Para dançar forró enquanto é moço
Um chapéu aba larga grande e grosso
Com a pena qualquer de um passarinho
E a medalha fiel do meu padrinho
Com um rosário enfiado no pescoço.
Ivanildo Vilanova
Falar mal do sertão hoje eu não ouço
Não se entrega ao cansaço ou enxaqueca
Um herói pelejando contra a seca
Contra a cheia combate sem sobrosso
Respeita a moral de velho ou moço
Também quer vê a sua respeitada
Sem Brasil a América é derrotada
Com Brasil a América vale mil
Sem Nordeste o Brasil não é Brasil
E sem Sertão o Nordeste não é nada.
Geraldo Amâncio
No sertão quando rompe a alvorada
No oitão do terreiro um frango pia
Uma cobra valente engole jia
Na floresta desperta a passarada
Canta uma canção tão afinada
Que parece uma orquestra universal
Um peru dá três voltas no quintal
Um cabrito na cabra puxa os seios
E o vaqueiro esvazio os peitos cheios
De uma vaca leiteira no curral.
Ivanildo Vilanova
Numa sombra que dá no mangueiral
O cachorro brigando com o teiú
A caçada de peba e de tatu
A novena, uma noite de natal
A carne de sol com pouco sal
Cantoria louvada com bandeja
No pilão duas moças na peleja
Uma arranca de inhame e de maniva
Isso aí é a cópia pura e viva
Da mais bela paisagem sertaneja.