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Sabe o que eu gostaria de ouvir hoje? Uma mentira de verdade.
“Como assim, uma mentira de verdade?”, talvez pergunte o leitor.
E já respondo: uma mentira de verdade é uma dessas mentiras criadas com o sincero propósito de ser apenas uma mentira; dessas que alguém conta em um grupo de amigos, só para divertir quem conta e quem escuta.
Noutras palavras, uma mentira de verdade é uma mentira que não tem a menor pretensão de parecer uma verdade. Que não mereça sequer a acusação de ser uma meia verdade.
Lembro que, quando eu era criança, perto da minha casa morava um senhor, a quem todos chamavam simplesmente de Tio Américo. Não sei se ele tinha sobrinhos de verdade, mas isso não tem importância agora. O fato é que todos ali, crianças e adultos, o chamavam de tio.
Acredito que ele tinha, na época, entre sessenta e setenta anos. Não consigo ser muito preciso a esse respeito, porque, sendo eu um menino de oito ou nove anos, a imagem que tinha dele era de um velho, com seus cabelos grisalhos e a pele do rosto marcada por rugas.
Lembro bem que Tio Américo trabalhava como barbeiro. Não em uma barbearia de verdade, com cadeiras giratórias diante de espelhos, mas nas casas de seus clientes. Ou na rua mesmo, nas calçadas dos bares e mercearias do bairro. Onde houvesse alguém querendo fazer a barba ou cortar o cabelo, Tio Américo abria sua maleta, retirava as ferramentas de trabalho e prestava o serviço.
Era nessas horas, durante o atendimento aos clientes, que Tio Américo exibia o seu verdadeiro talento: contar mentiras; mentiras de verdade.
E como mentia bem! Acredito que muita gente cortava o cabelo com ele, só para ouvir suas mentiras.
Recordo uma vez em que ele, enquanto cortava o cabelo do meu pai, na calçada da nossa mercearia, contava uma aventura que dizia ter vivido em um tempo em que teria sido jogador de futebol.
— Nesse tempo eu jogava no Ceará — dizia ele, preparando o terreno para os eventos extraordinários que narraria a seguir.
Enquanto fazia uso da tesoura e do pente, mostrando destreza com as mãos, falava de sua habilidade com os pés.
— Pois, Mansueto — dizia Tio Américo, — o negócio apertou foi num dia em que nós fomos jogar contra o Guarany de Sobral, lá no Estádio do Junco.
Antes de prosseguir com a narrativa, um esclarecimento, especialmente para os leitores que não tenham muitas informações sobre a geografia e o futebol cearenses: no Ceará existe o time do Guarani Esporte Clube, da cidade de Juazeiro do Norte, onde o estádio de futebol se chama Romeirão; e o Guarany Sporting Club, da cidade de Sobral, que recebe as equipes visitantes no Estádio do Junco.
Feito o esclarecimento, sigamos ouvindo o Tio Américo, porque, àquela altura, já havia umas oito pessoas, entre adultos e crianças, prestando atenção à conversa.
— Rapaz… o jogo ia ser domingo de tarde. Cinco da tarde. Todo mundo foi avisado que nosso ônibus ia sair de Fortaleza seis da manhã, pra dar tempo da gente almoçar em Sobral, descansar um pouco e chegar no Junco às quatro. Mas aí, meu irmão, eu fui a uma festa, no sábado, e acabei perdendo a hora do ônibus. Quando acordei, já era bem umas dez horas. Imaginei que, mesmo que eles tivessem esperado uma meia hora por mim, àquela altura já estavam pra lá de Itapajé…
Enquanto ele falava, a quantidade de espectadores ia aumentando. Quem chegava com a história já em andamento ficava quieto, tentando pegar o fio da meada. Tio Américo prosseguia:
— Aí eu me conformei. Almocei, fiquei por ali, meio triste, em casa… Quando deu cinco horas, eu liguei o rádio e fui ouvir o jogo. Meu irmão, mal começou, o Guarany fez logo um gol. Com dez minutos, fez outro. Dois a zero. Aquilo me deu um remorso tão grande que veio uma ideia na minha cabeça. Nesse tempo eu morava perto da Praça da Estação. Aí eu vesti o uniforme do Ceará, calcei as chuteiras, peguei duas barras de sabão e fui pra estação do trem. Calculei qual era linha pra Sobral, que eu conhecia bem, cuspi nos trilhos; botei uma barra de sabão em cada trilho; fastei pra trás uns cinquenta metros, fiz carreira pra pegar impulso, e pulei em cima das barras de sabão. Rapaz… as travas da chuteira entraram no sabão que foi uma beleza! E eu fui escorregando pra frente! Fui pegando embalo, fui ganhando velocidade, com pouco tempo eu tava entrando na estação ferroviária lá de Sobral.
Gargalhada geral! Empolgado com a própria narrativa, Tio Américo havia suspendido até o corte de cabelo do meu pai. Mas não tinha ainda terminado a história. E prosseguiu:
— Quando eu fui saindo da estação, tinha um rapaz com um rádio, e eu perguntei pra ele de quanto tava o jogo. Ele disse “dois a zero Guarany; trinta do segundo tempo”. Aí eu pensei: “ainda dá”, e corri pro Junco. Cheguei no estádio, o treinador me mandou entrar ligeiro. Aquecimento, não precisava, que eu já vinha embalado.
Tio Américo fez uma pausa para temperar a garganta. Preparava o gran finale.
— Entrei em campo aos trinta e oito do segundo tempo e viramos pra três a dois. Ô jogo!
Nova bateria de gargalhadas ecoou. Ele próprio era um dos que mais ria.
Só meu pai, com o cabelo ainda por terminar de ser cortado, sorria de maneira contida. Não que não houvesse gostado da história, ou que estivesse incomodado com a demora de Tio Américo para terminar seu atendimento. É que o Seu Mansueto sempre riu pouco mesmo. Esperou que se fizesse silêncio e perguntou, demonstrando interesse:
— Tio Américo, e o senhor fez algum desses três gols?
— Fiz os três — respondeu o barbeiro, sem titubear. — No último minuto, ainda dava pra eu ter feito mais um. Passei por três zagueiros, fiquei cara a cara com o goleiro, mas toquei pra um rapaz que jogava de ponta esquerda, que era muito meu amigo. Eu quis dar a oportunidade a ele. Só que, pela posição que ele vinha, ele bateu com o pé direito e jogou por cima do gol. Não fosse isso, tinha sido quatro a dois.
O homem era — desculpe-me, leitor. o trocadilho — um craque! Na arte de mentir, claro.
Mas eram mentiras inofensivas, boas de ouvir. Diferentes dessas que encontramos hoje em dia, na TV, no rádio, nos sites de notícias e nas redes sociais, com o nome pomposo de fake news.
São umas mentiras pretensiosas essas tais fake news. Misturadas às verdades, com o propósito de enganar, para fazer prevalecer interesses nem sempre confessáveis.
Sim, eu sei que sempre houve mentiras escondidas em meio a verdades. Talvez o que haja de diferente hoje seja a quantidade dessas mentiras, aliada à velocidade com que elas percorrem o mundo. De tal modo que todos os dias recebemos uma quantidade enorme de informações, mas com baixíssima ou nenhuma confiabilidade.
Talvez o que esteja me acontecendo hoje seja o seguinte: tantas são as verdades mentirosas que nos chegam, que senti o desejo de ouvir ao menos uma mentira de verdade.
Como naquele dia, quando Tio Américo, após contar toda aquela história, enquanto cortava o cabelo do meu pai, desculpou-se por ter que ir logo embora:
— A essa hora, minha mulher já encheu minha banheira de água quente. Aí, chegando em casa, eu tomo banho, almoço… e vou tocar piano até umas horas…
Todos sabíamos que na casa do Tio Américo sequer caberia uma banheira, tampouco um piano. Mas ele estava sempre pronto para contar mais uma das suas mentiras. Que eram apenas mentiras. Mentiras de verdade.