Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas sexta, 07 de maio de 2021

UM FRUTO DA ÉPOCA (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO DE AZEVEDO)

UM FRUTO DA ÉPOCA

Aluísio Azevedo

 

Ontem, quando saí do trabalho, para ir tomar o aperitivo do costume antes do jantar, dou com o nosso querido escritor, o Ernesto Branco, que eu não via há muito tempo.

 

– Olá! exclamei. Bons ares te restituam à rua do Ouvidor. Como vai isso, poeta? Que tens feito? Qual é agora o teu livro? Qual é o teu novo amor?

Ernesto respondeu-me a tudo isso com um gesto seco, acompanhado de um triste sorriso, que até então nunca lhe vira nos lábios.

E notei que a sua inteligente fisionomia perdera a primitiva expressão de alegre coragem, e parecia agora fechada sobre um surdo desgosto, desses que nos acabrunham, não pela violência da dor, mas pela pungente convicção de que não há esperança de remédio para eles.

– Que tens? perguntei-lhe, encarando-o. Parece-me doente.

– Tédio, murmurou o meu amigo, fechando por um instante os olhos e levando lentamente o charuto à boca.

– Tomaste já o teu vermouth?

– Já não tomo vermouth

– Tomarás hoje. Vem daí.

Subimos até ao largo de S. Francisco e fomos ter àquela confeitaria onde há um viveiro de passarinhos.

Uma vez instalados ao canto mais sombrio do botequim, disse-nos Ernesto enquanto o servente esperava as nossas ordens:

– Não bebas vermouth francês. Li numa revista médica muito séria, que essa detestável bebida é de todos os veículos alcoólicos o mais rápido para chegar à morte ou ao delirium tremens. Depois dele é que está classificado o ilustre absinto, e em terceiro lugar o piperment.

– Pois tomemos uma passagem de segunda classe. Garçom, dois absintos!

– Com goma?

– Não! com água e gelo. Para que adoçar os meios de morte?…

E, voltando-me de todo para o meu amigo, atirei-lhe misteriosamente a nova pergunta a respeito do que ele fazia nesse momento. Era impossível que Ernesto, o fecundo trabalhador das letras brasileiras, não tivesse em mão um novo livro. Quem sabe mesmo se não seria o excesso de trabalho o que lhe dera ao semblante aquele ar de fadiga e aborrecimento ?… Escrever com arte é coisa tão penosa e acabrunhante!… E eu sabia perfeitamente que Ernesto era desses artistas que, quanto mais produzem, melhor e mais acabado querem produzir; desses que, ao terminar uma obra, pensam logo em principiar outra, porque aquela lhes parece ainda incompleta e falhada. Qual seria, pois, a minha desilusão, qual seria o meu desgosto, notando que Ernesto, em vez de responder ao sincero interesse da minha pergunta de admirador e de amigo, deixara pender a cabeça e olhava vagamente para o seu copo?

– Então?! insisti. E’ segredo?! Fala-me do teu novo livro! Dize-me o que estás escrevendo agora…

– Nada…

– Nada ?! Ora essa! Por quê?

– Não vale a pena!

– Ó injusto! Ó ingrato! Pois tu, o único homem de letras que ultimamente no Brasil tem ganho dinheiro… tu, que tens leitores certos; que tens editores para tudo o que escreves; tu, ó felizardo! tens a coragem de falar desse modo…. Vai para o diabo que te carregue! Não sei que queres tu então!

– Estás enganado… – replicou-me Ernesto sem se alterar. Estás muito enganado a meu respeito. Eu tinha com efeito três leitores, mas um abandonou-me para entregar de corpo e alma ao jogo da bolsa e agora só pensa em salvar-se do naufrágio em que o lançaram; o outro deixou-me pela política e, perseguido pelo governo atual, só pensa em salvar da fome a mulher e os filhos e em livrar do cutelo da legalidade a própria cabeça ameaçada. Bem vês que quem tem a pensar em coisas tão preciosas – o dinheiro e a vida, – não se pode dar ao luxo de ler os meus livros.

– E o terceiro?

– Ah! com o terceiro não conto; não contei nunca para pôr o livro no prelo ou a panela no fogo.

O terceiro é o meu colega, é o literato, é o jornalista, é o crítico; é o leitor que foi muito meu amigo enquanto as minhas obras nada rendiam, e que começou a dar-me bordoada de cego, desde que a coisa cheirou a sucesso de livraria.

Não o amaldiçoa; devo-lhe talvez mesmo a coragem triunfante com que trabalhei durante de anos; devo-lhe a convicção do meu valor e da minha energia, agora apagados; devo-lhe o cuidado crescente com que fui caprichando mais e mais toda a nova obra que eu produzia; mas não estou disposto a escrever só para ele, por uma razão muito simples, porque esse leitor não paga!

– Não! bradei eu com um murro na mesa. Não tens razão. Ou te esvaziaste o teu saco, meu rapaz, ou foste invadido pela preguiça! Os teus paradoxos são desculpas de cabo de esquadra! Dize-me que te esgotaste, e nada protestarei, mas…

– Não! Creio que não me esgotei, porque preciso empregar verdadeira violência para não continuar a escrever. Mas trabalhar para quê? por quê? para quem? em que língua? Nesta que falamos? Mas isso é escrever para a família; isto é o mesmo que falar para dentro de um garrafão vazio? E’ ridículo escrever na língua portuguesa!

– Uma bela língua!

– Qual história! Uma língua incompleta e dificílima; uma língua sem prestígio, sem utilidade, sem vocabulário técnico para a ciência e para as coisas da vida moderna; unia língua que nem sequer tem ortografia, porque não tem ainda um dicionário definitivo; uma língua tão mesquinha, que não tem palavras de tratamento. – O homem é senhor, a mulher é senhoira, e acabou-se! Demoiselle, Miss, Senhorita não têm tradução em português. Uma língua em que é preciso errar, quando se não quer ser afetado na linguagem, porque não se há de fazer os personagens tratarem-se por vós, quando o que se usa é você. Você é gíria, é uma asneira que não existe autorizada por língua nenhuma do mundo!

– Você é a corrupção de Vossa Mercê.

– Não é tal! Vossa Mercê é um tratamento respeitoso, e eu não posso perguntar a urna senhora a quem falo pela primeira vez: “Você como vai?” o Usted espanhol, sim, é que pode ser usado e corresponde em respeito e legalidade ao desusado e inútil Vossa Mercê da língua portuguesa.

– Não! Pode-se perfeitamente falar ou escrever a boa língua portuguesa sem errar.

– Sem afetação clássica é impossível. Diz-me a gramática que o imperativo consta de “Faze tu; fazei vós; e eu digo todos os dias ao meu criado: “Faça isto: faça aquilo”. Um horror! Pois eu posso lá continuar a escrever em semelhante língua?… Maldita a hora em que nô-la impingiram os donos dela, A língua portuguesa foi um presente grego!

– Ninguém pode negar que é um idioma elegante…

– Elegante e limpo: A barba que se usa por debaixo do queixo chama-se “Passa-piolho”. A nostalgia da pátria chama-se “Morrinha galega”.

O Antônio Castilho para dizer numa página que, no lugar descrito por ele, havia grande número de raparigas, exprimiu-se assim: “havia moçame à tripa forra”… Que elegância! Que distinção!

– Não concordo contigo.

– Pois não concordes. Ainda não há muito tempo, o Azeredo Coutinho, fazendo a tradução de uma comédia francesa, viu-se em sérios embaraços, para dizer em português um diálogo travado entre dois personagens de sexo diferente, porque os dois não deviam, nem podiam tratar–se por tu, mas também não deviam tratar-se por senhor, que é tratamento muito cerimonioso; e como não existe ou não se usa em português o tratamento de vós, o nobre tradutor, para não abandonar a sua obra, teve de fazer, sabes o teve de dar um título a cada um dos dois personagens, a mulher fez baronesa, e ao homem conde, para que eles pudessem conversar do seguinte modo, sem se tratarem por tu, nem por senhor: “A Baronesa é cruel”, “Não diga isso, Conde”, “A Baronesa não quer ouvir-me, mas eu hei de fazer-me ouvir pela Baronesa…”, “Oh, o Conde não tem razão, mas eu perdoo o Conde”. Delicioso! Mas ainda assim, prefiro que os senhores tradutores vão imitando Portugal na farta distribuição de títulos, ruas não imitem os atuais escritores portugueses que, apertados como o Azeredo na dificuldade do tratamento, recorreram ao passivo si, fazendo-o concordar com a pessoa com quem se fala; de sorte que, escritas por esses mestres aquelas frases citadas, ficariam assim: “A Baronesa não quer ouvir-me, ruas eu hei de fazer-me ouvir por si”, “O Conde não tem razão, mas eu perdoo a si”. Ah, bandidos! E queres tu, meu amigo, que eu escreva em semelhante língua, e para semelhante público de imbecis?!… Não! antes uma boa morte!

E Ernesto, com a resolução de um suicida, gritou para o moço do botequim:

– Garçom! traz um expresso de segunda ordem, bem carregado, bem forte, bem rápido, que me atire o mais depressa possível ao outro inundo! Ao menos lá hei de falar alguma língua que não seja a do padre Sena Freitas!


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