Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Carlos Eduardo Santos - Crònicas Cheias de Graça quarta, 21 de setembro de 2022

UM CERTO SENHOR SALVADO (CRÔNICA DE CARLOS EDUARDO SANTOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

UM CERTO SENHOR SALVADO

Carlos Eduardo Santos

 

Osmar Salvado de Lima – Tenente Aracaty

 

Disseram-me certa vez que eu nunca tentasse voltar ao passado físico. A algum lugar de sabor intenso para o espírito. O amigo Osmar Salvado de Lima, mais conhecido como “Tenente Aracaty”, versado em filosofias, poeta em dias de domingo e também filósofo, costumava dizer: “Nada é igual na repetição”. Tomei isto como norma!

Portanto, nunca encontraremos o lugar como era antes, as pessoas com as mesmas fisionomias, as casas com o mesmo jeito, os velhos quintais arborizados. O melhor mesmo será manter apenas as velhas lembranças da mente. E assim fica tudo como era antes.

No decorrer destes 86 anos de vida conheci pessoas que marcaram minhas atenções pelos modos pessoais de convivência, pensamentos, ideias e formas de vencer dificuldades do cotidiano.

Alguns deixaram registros tão significativos que faço questão de viver repetindo-os e transmitir, porque sua notabilidade e exemplo podem orientar os mais jovens.

Um deles foi Osmar Salvado de Lima, um carioca que se tornou recifense para sempre. Meu amigo até seus 102 anos bem vividos. Recentemente encantou-se, ainda com a mente intacta para relembrar coisas do Recife. Um personagem que merece muito mais do que estes breves comentários.

Teve pouco estudo na juventude. saíra de casa com 13 anos de idade e passara a adolescência trabalhando avulso em várias atividades. Sendo o mais velho, havia ouvido dos irmãos menores uma frase desconcertante, em conversa entre eles , que jamais souberam que ele havia escutado:

“Tomara que o Osmar cresça logo e vá embora para sobrar mais comida para a gente”. Foi a pobreza que o levou a sair de casa e parar de frequentar a escola pública. Mas, no decorrer dos tempos de caserna foi autodidata e cresceu na arte de escrever, fazer versos e filosofar.

Entrou na Marinha do Brasil no tempo em que o Brasil participou da II Guerra Mundial e precisava de jovens altos e fortes. Não chegou, portanto, a viver as delícias da juventude carioca, pois serviu a melhor parte dessa época na caserna.

Como Fuzileiro Naval foi até o fim da carreira chegando à Reserva Remunerada quando servia no Recife.

Redigia como ninguém. Inteirado do assunto, pegava a esferográfica e uma folha de papel-jornal – que sempre usava para rascunhos – e escrevia com facilidade. Dominava a clientela através de correspondências.

 

Possuía raciocínio incrível. E ideias, nem falar. Tino comercial de fazer inveja. Cinegrafista amador, possuía u’a máquina de Super-8 e os apetrechos para editar suas películas.

Deu-se bem como empresário, implantando no Recife o sistema oficial de Vigilância Ostensiva Patrimonial.

Fundou o Grupo Preserve, empresa e Segurança Privada e Transporte de Valores, instituição que só com idade avançada transferiu para outro Grupo, considerando que havia chegado ao pódio em duas profissões, como militar e empresário.

Quando me aposentei como bancário fui seu assistente um bocado de tempo. Líder do ramo, ajudou a fundar duas associações de classe: o Sindicato dos Vigilantes e depois a ABTV – Associação Brasileira dos Transportadores de Valores, que tinha status de sindicato.

Tinha percepção incrível. Jamais se negou receber quem quer que fosse. Quando havia pouco tempo para o atendimento, “aplicava” seu método infalível para abreviar o assunto: recebia o consulente de pé, dando a entender que seu tempo era curto e dava a entender que estava de saída.

Passando, certa feita, pela Av. Visconde de Suassuna me deparei com a placa: “Grupo Preserve”. Visando apenas cumprimentá-lo pelo êxito de sua empresa, subi com um amigo.

Recebeu-me de pé. Notei que estava apressado para sair. Abreviei os cumprimentos e como conhecia bem sua trajetória até aquela posição como empresário, iniciei minha prosa anunciando que estava feliz em vê-lo exitoso. E encerrei a visita.

Logo indagou a finalidade de minha visita e repeti a história: Só vim cumprimentá-lo! Deixei meu cartão-de-visita de auditor contábil e me mandei. Deve ter ficado admirado porque pensava que eu fosse solicitar alguma coisa.

Tempos depois, já funcionando numa ampla casa na Rua Montevideo, no Derby, recebi telefonema para uma visita. Contratou-me, fiz uma auditoria e fiquei como seu Assistente durante quase oito anos.

No Sindicato das Empresas de Segurança Privada do Estado de Pernambuco situado na Av. Agamenon Magalhães, a Sala de Reuniões leva seu nome; de fato como se tornou um emblema na sociedade em geral: Tenente Aracaty, homenagem que recebeu ainda com vida.

Tinha macetes incríveis. Provava sabedoria: todas as procurações que outorgava aos seus colaboradores venciam-se em 31 de dezembro; e só se utilizava do Cartório Pragana para todo e qualquer registros.

Comprou um dos primeiros carros movidos a álcool no Recife. Negociou na agência Ford um Corcel, muito barato porque ninguém queria usá-los na época, face à fama de defeitos que apresentava.

Dizia-se que caia as rodas dianteiras por causa do sistema de tripoides, até que apareceram as juntas homossinéticas; e demorava a “pegar”, ficava engulhando na rua, chegando às vezes a arriar a bateria, pois o motor era muito solicitado.

Experiente, sabendo que certos carros precisavam usar gasolina azul ou esquentar o motor por algum tempo – como o velho Landau que possuiu durante muitos anos, o qual possuía uma pequena luz amarela indicativa de “motor aquecido”, topou comprar o Corcel II, que era o mais novo lançamento da Ford.

Mas aplicava um macete pouco usual. Ao acordar ia à garagem, acionava o acelerador várias vezes, sem ligar a chave. Depois ligava o motor de arranque e quando o bicho pegava ele ia fazer a barba e tomar banho. Só depois deixava o motorista Lourival tirar o carro da garagem.

Depois teve a elegância de ir à concessionária Concórdia S.A. e ensinou ao chefe dos mecânicos como era a manobra para o carro não dar problemas. Acabaram-se as reclamações. Presenciei quando o Gerente, Jordano Parmera, foi à Preserve lhe agradecer a adoção do macete.

Aprendi muito; com ele viajei para Salvador e Rio de Janeiro, a fim de preparar reuniões para a fundação da Associação dos Brasileira dos Transportadores de Valores. Ficamos hospedados no Hotel Meridien.

Lembro-me com entusiasmo que no dia da festa de confraternização ele fez um discurso tão emocionante que foi aplaudido de pé e abraçado por quase todo o auditório, onde estava boa parte da mídia salvadorenha; peça que, aliás, constou da ata de fundação, como Anexo.

Aqui, recordo, portanto, apenas algumas coisas que ele gostava de conversar comigo durante nossas viagens. E dessas lembranças tão saborosas anotei algumas que foram esmerilhadas e adoçadas com boas risadas, sobre histórias engraçadíssimas que ele tão bem sabia contar.

Viajamos à Paraíba semanalmente, onde íamos inspecionar as filiais da Preserve em João Pessoa e Campina Grande. Suas histórias eram sobre fatos dos quais foi protagonista. De algumas delas fui partícipe. Narrativas que mais pareciam piadas.

Na barra de rolagem de minha privilegiada memória vão surgindo as lembranças de vários tempos que se foram, nossos usos e costumes. Tradições que tanto Aracaty relembrava. Depois que se aposentou passou a fixar no papel seus pensamentos, sob a forma de poesia, que escrevia do jeito que lhe parecesse mais pessoal:

Amor, amizade e convivência tudo é igual à futura, próxima ou remota saudade.

O amor é o sal da saudade. Mas não é imprescindível. Apenas a reforça. Ela existe firme e forte sem ele. Depende de quem escreve, depende de quem lê, depende de quem está vivenciando. Se houver reciprocidade, há, tenho certeza!

O coração, este órgão com tantas importantes funções, é também, talvez e principalmente, um tradutor de sentimentos, um decodificador de emoções, pessoal e intransferível. Por isto, responsável pelos mais contraditórios resultados. De um coração para outro, elas, as diferenças, poderão ser abissais.

Li, não me recordo onde e qual o autor, que determinado personagem “Se sentia só, no meio da multidão.” Sempre duvidei. Hoje, não só compreendo como aceito que é válida, esta afirmativa.

Ao completar 100 anos tornou-se cronista e escreveu:

Em meio ao excesso de atenção, cercado de amor e carinho, onde transborda o interesse pelo meu bem estar, o cuidado com os remédios na hora exata, os olhares de admiração, atenção e respeito.

Se fecho os olhos, falam baixo para não me acordar, o que seria impossível porque só se acorda quem está dormindo. O ajuste do chinelo, quando vou calçá-lo; a mão estendida quando vou me levantar; o alisado no restante do cabelo.

O ombro amigo quando caminho; a colocação de um pires sob meu queixo quando vou beber, seja lá o que for, para não derramar na camisa.

A pergunta constante: se quero ver outro programa do rádio ou da televisão; Os amigos querendo que não suba escada. Vou me sentindo: “Só no meio da multidão”.

E vai daí, uma nuvem que escurece meus olhos, não só os do rosto, também os da alma…

A partir deste ponto, ela vem chegando.

Não bate, não pede licença, silenciosamente se insinua e se apossa de mim. Aprendi a identificá-la. E ela, silenciosa, estronda meus tímpanos. Sua lentidão vertiginosa me deixa tonto.

É a felicidade que me intimida. É a luz que me cega. É a beleza que me assusta. É a tranquilidade que me provoca taquicardia, enfim, é a saudade.

É o passado voltando. São as coisas boas que se foram que me entristecem. São as coisas ruins que não me incomodam mais, que me alegram. É o contraditório me acuando.

É a frustração, é o arrependimento, de não ter agido melhor; encontrado solução mais adequada, em certas circunstancias.

É o sorriso com lágrimas de dor. É o choro convulso por um ato feliz. É o excesso de satisfação e felicidade. É a vida com cheiro de morte. É a morte nos voltando para a vida. Enfim, repito, é a saudade.

É indefinida, não tem uma sequência lógica, não encadeia os fatos, bloqueia nosso raciocínio, e pergunto: Isto nos trás felicidade? Nos torna feliz? Ou apenas mexe com nosso sistema nervoso?

Mexe e me faz feliz. Fará você também. E fará feliz todo aquele que aceitar o adágio popular: “Recordar é reviver”, é viver de novo.

Ameaçado de infarto, hospitalizado, sem definição de sua situação real, escreveu na madrugada de 23 de agosto de 2017, texto que chamou de “contraditório”, que acima transcrevemos.

Este, portanto, era o meu amigo Tenente Aracati, um certo senhor Salvado.


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