Quando do conclave que elegeu Bento XVI, torci abertamente por um seu concorrente, o cardeal Carlo Maria Martini (1927-2012), ex-arcebispo de Milão e líder da corrente modernista defensora do chamado “espírito do Concílio Vaticano II”. Temia-se que uma noite tenebrosa continuasse a cair sobre a Igreja Católica depois do Concílio Vaticano II, o que de fato aconteceu, apesar da estupenda cultura do eleito, ex-prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Santa Inquisição na terminologia antiga, quando da sua lavra emergiu o silêncio obsequioso imposto ao então franciscano Leonardo Boff, por seu livro Igreja, Carisma e Poder, uma leitura que muito me entusiasmou, após leitura de Jesus Cristo Libertador, à época no Mestrado em Educação da PUC-Rio de Janeiro, 1973. A Santa Inquisição foi instituída, em 1542, pelo papa Paulo II, sendo composta de seis cardeais, se constituindo na mais antiga das nove atuais congregações vaticanas.
Em 2007, o cardeal Martini, juntamente com o padre Georg Sporschill, responsável por um estupendo trabalho social com meninos de rua na Romênia e na Moldávia, elaboraram o livro Diálogos noturnos em Jerusalém: sobre o risco da fé, editado no Brasil, em 2008, pela editora Paulus, com prefácio do próprio cardeal. E no diálogo com os jovens, perceberam que “onde há conflitos, arde o fogo, o Espírito de Deus está agindo.”
Na suas primeiras linhas, o padre Sportschill, também jesuíta, postula uma Igreja que ouse e que possua cada vez mais credibilidade, com coragem e abertura, na certeza de que “você aprende mais a crer quando ajuda outros a aproximar-se da fé.” E vai bem mais longe: “Experimentar Deus é a coisa mais fácil e ao mesmo tempo a mais importante na vida. Posso experimentá-lo na natureza, na palavra da Bíblia e de muitos outros modos. É a arte da atenção que se deve aprender do mesmo modo como se aprende a arte do amor ou a arte de se ser bom no trabalho.”
Num livro de pouco mais de 150 páginas, sintetizei algumas reflexões do cardeal feitas para atender às perguntas de muitos jovens. Abaixo, algumas das respostas dadas aos jovens por quem muito contribuiu para a melhoria das relações da Igreja, encarapitada muitas vezes em pedestais de pés carcomidos, com uma Europa que está a necessitar de mais harmonia entre suas diversas comunidades e etnias.
“Se olho o mal no mundo, perco o fôlego. Entendo as pessoas que chegam à conclusão de que não há Deus. Só quando contemplamos o mundo – tal como ele é – com os olhos da fé, podemos mudar alguma coisa. A fé desperta o amor, esse nos leva ao engajamento a favor de outros. Da dedicação nasce a esperança – apesar do sofrimento.”
“Deus deu ao homem a liberdade. Ele não quer robôs, não quer escravos, Ele quer interlocutores livres. Interlocutores livres respondem a oferta dizendo sim ou não, eles amam ou não amam, não são forçados.”
“Temos que tomar cuidado de empregar a riqueza como um instrumento para nossa felicidade e para promover maior justiça, de forma que ela não se transforme num peso.”
“Muita desgraça é produzida pelo homem. Isso nos obriga a pensar politicamente e a lutar por justiça, a lutar por um lugar para as crianças, para os idosos, para os enfermos, e a lutar contra a fome e a AIDS. De quais restrições e renúncias sou capaz para que alguma coisa mude?”
”A felicidade existe para ser partilhada. Felicidade não é algo que venha ao encontro da gente ou algo pelo qual tenhamos que esperar. Temos que procurá-la.”
“Numa situação difícil, ou diante de uma grande tarefa, ganha força aquela oração que um dia aprendemos de forma natural, sem pensar nela.”
“Se passo todo meu tempo olhando televisão ou diante do computador, então os ‘músculos’ do amor, da imaginação e do relacionamento com Deus se atrofiam. Estou convencido que temos que nos exercitar: orações, exercícios espirituais, conversações e compromissos sociais. Quem o faz, se aproxima de Deus, sente com mais força que está se tornando interlocutor de Deus.”
Uma das afirmações mais corajosas do cardeal Martini, ela a pronunciou em Jerusalém, numa das suas caminhadas noturnas, quando o notável religioso liderava uma ala da Igreja que desejava desempoeirar os recantos de uma instituição que necessita ir ao encontro dos mais desassistidos do planeta, onde, segundo ele, quando ocorrem os conflitos, são sinais da ação de Deus: “Passos no caminho de Deus podem significar também conhecer outras religiões, aprender uma língua estrangeira, para que a compreensão e a paz se estendam cada vez mais.”
Certa feita, o cardeal Martini ouviu de uma senhora abastada que trabalhava voluntariamente num campo de refugiados: “A miséria que a TV mostra todos os dias é deprimente. Agora, me defronto com ela, e meu serviço me dá uma alegria que não tinha ficando em casa. Descubro que muitos refugiados são mais criativos e têm mais espírito de humor, são mais religiosos e melhores amigos que muitos dos meus velhos conhecidos”.
Eis, acima, uma das razões pelas quais sou voluntário do Centro Espírita Irmã Gertrudes, no Recife, assimilando cada vez mais as linhas mestras da doutrina kardecista. E me tornando mais solidariamente humano, a cada amanhecer.