A. C. Dib
Não era grego e nem, tampouco, irlandês ‒ era paulista, quatrocentão ‒ mas também viveu aventuras épicas, combatendo, com seu vibrante gládio composto por palavras seguras e cortantes, hediondos gigantes ciclopes, cães infernais, hidras ferozes, dragões-de-sete-cabeças cuspidores de fogo e a magnética e infalível Medusa.
Ativo no movimento estudantil, militante da UNE, bacharelou-se em Direito pela Faculdade de Direito – Largo de São Francisco ou Arcadas, como também é chamada – da Universidade de São Paulo.
Foi professor – de Direito Internacional Público, de Direito Municipal e Direito Constitucional ‒ de algumas das melhores instituições de ensino superior do Estado de São Paulo, exercitando, ainda, a advocacia, com especialização em Direito Tributário. Viveu, igualmente, fase de cartola do futebol, como diretor-presidente do Santos Futebol Clube.
Mas, indubitavelmente, foi na política que Ulysses se encontrou, e gravou ‒ a laser ‒ seu nome nas luzidias folhas de aço da recente história do Brasil.
Deveras, “político de raça”, como costumava dizer, designando aqueles que amam a política e que fazem desta arte seu modus vivendi, Doutor Ulysses exercitou, por anos a fio, este nobre e honroso mister.
Não obstante, sua política não era – jamais foi ‒ a política rasteira, chula, eleitoreira, fisiologista, demagógica e nepotista, ou a política das raposas e dos anões, a política dos caudilhos e coronéis, mas a alta política, a grande política, a construtiva e desapegada, a política dos idealistas, dos estadistas, dos patriotas, dos sonhadores, dos gigantes públicos, a política de Pedro II, de José Bonifácio, de Juscelino, de Péricles, de Disraeli, de Churchill e de Lincoln.
Assim, foi Deputado Estadual, em 1947, e, depois, Deputado Federal em nada menos que onze legislaturas, de 1951 a 1995 (nesta última, não terminou seu mandato), elegendo-se, sempre, por São Paulo.
Além disso, foi Ministro da Indústria e Comércio, do Gabinete Tancredo Neves, no curto período de nossa aventura mágica de parlamentarismo republicano.
Mas Ulysses, em verdade, se notabilizou por sua ingente e destemida luta contra a ditadura militar. À frente do velho MDB – Movimento Democrático Brasileiro ‒ escreveu páginas imorredouras no célebre “jogo de avanços e recuos” contra a ditadura – jogo este, à época, perigosíssimo de se jogar, custando, a uns, a vida, a outros a liberdade e, a outros mais, a cassação dos direitos políticos.
Em 1973, “anticandidato” a presidente da República, disputou eleição no viciado e fatídico Colégio Eleitoral, sendo que, em verdade, valeu-se da chamada anticandidatura para denunciar as mazelas da ditadura, por todos os rincões do País.
Findo o bipartidarismo, converteu seu querido MDB em PMDB, permanecendo, aguerrido, a liderar na trincheira oposicionista.
Tinha sempre consigo, nos embates e refregas contra a truculenta ditadura, os inseparáveis escudeiros Freitas Nobre e Humberto Lucena, respectivamente, líderes do MDB na Câmara dos Deputados e no Senado.
Foi o inconteste comandante da memorável Campanha das Diretas Já, que clamava por eleições diretas para presidente, tendo a seu lado, naquelas históricas jornadas, os não menos saudosos, Teotônio Vilela – que, pouco antes do início da inesquecível campanha cívica, perdeu cruenta batalha contra o câncer – Tancredo Neves, Franco Montoro, Mário Covas, José Richa e outros brasileiros de estatura moral gigante, movidos do mais lídimo ideal democrático.
Soçobrando a Emenda Dante de Oliveira, que reinstituía a eleição direta para presidente, o Deputado Ulysses viu diluir seu sonho de galgar a presidência, eis que, das articulações vitoriosas, brotou formada a Chapa Oposicionista Tancredo/Sarney, para disputar, no Colégio Eleitoral, contra Paulo Maluf, a derradeira eleição indireta de Presidente do Brasil.
Posteriormente, porém, na Assembleia Nacional Constituinte, então convocada e eleita, Ulysses se tornou tri-presidente: Presidente da aludida Assembleia Nacional Constituinte, Presidente da Câmara dos Deputados e Presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
Legou ao Brasil e a seu povo a Constituição de 1988, que batizou de Constituição Cidadã, genuína campeã, de todas as Cartas nacionais, de democracia e liberdade, e, mesmo prolixa, modelo para o mundo.
Candidato a presidente em 1989, terminou derrotado, logo no primeiro turno daquela eleição.
Curiosamente, mesmo reverenciando – era, em verdade, quase que adoração – o combativo Ulysses, não votei nele para presidente: engajei-me na campanha de Guilherme Afif Domingos – que, igualmente, restou vencido ‒, completamente arrebatado por seu discurso liberal.
Já no segundo turno da disputa eleitoral, figurando, como candidatos, Lula e Collor ‒ este o vencedor ‒, xinguei a ambos – a cédula eleitoral era de papel, com o nome dos candidatos, para ser marcada à caneta ‒ e, abaixo dos nomes daqueles, grafei e marquei o nome de Ulysses, registrando, ao lado: “o guerreiro da democracia”. Abaixo, assinei, escrevi por extenso meu nome e, por fim, o número de meu registro na Ordem dos Advogados do Brasil.
Todos os presentes estranharam a minha prolongada permanência atrás da urna, eis que o eleitor apenas marcava um singelo “x” na quadrícula posta à frente do nome dos candidatos. Hoje, o processo eletrônico não admite mais semelhantes ginásticas e proezas.
Pouco antes de sua morte, Ulysses liderou os congressistas na luta – abraçada, com paixão, por toda a nação ‒ pelo impeachment de Fernando Collor.
Aproximando-se o infalível impedimento, Collor, tomado de ira e desespero, atacou duramente o Senhor Diretas Já, chamando-o, dentre outras coisas, de velho gagá. Ulysses ‒ incomparável frasista que era – devolveu:
‒ Velho sim, mas não velhaco. Quem dorme com criança amanhece mijado! ‒ mandou, em alusão à juventude do Imperador/Presidente.
Ulysses desapareceu em um acidente de helicóptero, ocorrido no litoral de Angra dos Reis, juntamente com sua mulher e companheira da vida toda, Dona Mora, com o Senador Severo Gomes e seu cônjuge e com o piloto.
De todos os que morreram, naquele trágico sinistro, o corpo de Ulysses foi o único não encontrado. Afinal, apenas a profundeza abissal do vasto oceano seria ampla e digna o suficiente para sepultar um herói e gigante de estatura e envergadura moral como a dele.
Homem incomum e grandiloquente como era, não poderia morrer de velho, no leito; necessariamente, tinha que encontrar morte incomum e grandiloquente, à sua altura.
Tive a oportunidade de cruzar com meu ídolo por duas vezes distintas: uma em solenidade ocorrida na sede brasiliense da Ordem dos Advogados do Brasil, e, outra feita, em convenção nacional do PMDB, em Brasília. Em ambas as ocasiões não lhe apertei a mão: quedei-me mudo e inerte, limitando-me a observá-lo, tomado de emoção e acanhamento.
Privilegiado fui, ainda, eis que o vi discursando, do alto de um palanque, em comício da campanha das Diretas Já, realizado em Brasília, próximo à Torre de Televisão. Nessa feita, quando o orador se posicionou à frente, para falar, bradei, a plenos pulmões:
‒ U-l-y-s-s-e-s!
Meu pai, ao contrário, em determinado evento, teve a oportunidade de conversar – longamente ‒ com ele. Ulysses, aliás, era muito bom papo. Disse, então, meu pai, a seu interlocutor:
‒ Deputado, meu filho tem verdadeira adoração pelo senhor! O Senhor nem imagina. Fico até enciumado.
Pois, então, leve o rapaz a meu gabinete, na Câmara, para me conhecer ‒ respondeu Ulysses. E aproveitando a deixa, indagou:
‒ E você? De quem é que você gosta?
Meu pai respondeu gracejando, mas com honestidade:
‒ Deputado, o senhor me perdoe, mas eu sou é malufista! ‒ disse, rindo-se.
Ulysses não titubeou:
‒ Não lhe gabo o gosto!
Ulysses Silveira Guimarães nasceu no dia 6 de outubro de 1916, em Itaqueri da Serra, Itirapina, São Paulo, e faleceu no litoral de Angra dos Reis, litoral fluminense, em 12 de outubro de 1992.