Ponte ferroviária sobre o Capibaribe. Bairro de Afogados, Recife,1944
O Autor, aos 15 anos, recebeu o que se chamava, no início dos anos 50, o “Bilhete da Sorte Grande”, entre aqueles que eram vendidos pela Caixa Econômica Federal de Pernambuco. Era o maior prêmio da loteria de uma instituição criada para concorrer com o popular “Jogo de Bicho”.
Tornar-se-ia jargão para anunciar pessoas de sorte inesperada que apareciam com muito dinheiro: “Fulano tirou o bilhete da Sorte Grande”!…
Mas a minha “Sorte Grande” não teria sido propriamente o resultado de nenhuma aposta de Loteria da Caixa e sim, de fato, porque a “D. Sorte” havia se tornado amiga para sempre, em vários episódios de minha trajetória.
De fato eu, meus pais e D. Beatriz Leite Barbosa, sabíamos que eu havia tirado a “Sorte Grande”, porque me foi oferecido, aos 14 anos, por aquela querida vizinha, um emprego de “office-boy” no City Bank, o maior dos Bancos americanos, onde ela tinha amizades fortes.
Nesses anos eu lavava o carro do vizinho, o sr. Leonardo, ajudava a trazer a feira de D. Ezilda e dava banho de sol no filho de D. Beatriz, o José Fernando Leite Barbosa. Um daqueles dias a mãe do menino, sabendo que eu sempre estava atento para ganhar algum dinheiro, me perguntou:
– Carlinhos, você que trabalhar de verdade?
Diante da imediata afirmativa, ela escreveu uma carta para sua irmã, Stela Leite, que trabalhava no Banco Itaú-América, do Rio de Janeiro e poucos dias depois fui orientado para me apresentar ao sr. Afonso Leão, Contador de um Banco, que tinha um nome enorme: The First National City Bank of New York.
Eu sairia da fase de menino para adolescente. Teria que usar calças compridas, deixaria de puxar carrinhos de madeira pelas calçadas da vila dos Remédios e passaria conviver com adultos.
Para mim, um pulo no desconhecido. Passaria seis horas no meio de adultos. As primeiras providências foi me submeter a rigoroso exame médico, a fim de ser admitido como segurado do antigo Instituto dos Bancários, o antecessor do INSS/SUS, para onde fui com mamãe.
Passei pelo Raios-X, u’a máquina que me impressionou porque mostrava o corpo da gente pelo lado de dentro. Ao analisar as chapas, Dr. Agenor Bomfim orientou mamãe sobre novos procedimentos, porque meu corpo era muito raquítico.
Recomendou alguns cuidados que ela deveria redobrar porque eu estava propenso a ter tuberculose, tendo em vista um dos meus tios haverem contraído tal doença, que ainda era a praga do momento.
Mamãe saiu preocupadíssima porque eu praticava natação (no Rio Capibaribe), ciclismo e futebol, tendo que trabalhar e estudar à noite. O esforço físico para essas atividades seria grande. Na época eu tinha o apelido de Dom Quixote, face ao corpo franzino.
Apalpando-me as juntas, canelas, braços e mãos descobriu, o cuidadoso médico, pequena protuberância na mão direita, bem em cima da marca do famoso “M”; aquele traço onde as ciganas costumam olhar e anunciar o destino das pessoas. Naquele ponto, sentiu uma calcificação, e procurou antecedências.
Meio acanhada, mamãe não negou fatos sobre minhas estripulias, informando que eu era muito travesso e gostava de tomar banhos de maré, às escondidas, no Rio Capibaribe, com meus amiguinhos. E quando desconfiava da peripécia que com frequência se repetia, a palmatória “cantava”.
“Na maioria das vezes, doutor – disse-lhe minha santa mãe – antes de entrar em casa, esse treloso me aplicava u’a malandragem: tomava banho de mangueira, no jardim, para tirar o sal do corpo e tentar me enganar a fim de conseguir se livrar da palmatória”.
Desconfiada, numa dessas saídas, quando alegava que iria jogar bola na “salina” com seus amigos, recomendei que não tomasse banho de mangueira, ao voltar, porque tinha uma coisa para lhe contar.
Ele estava certo de que escaparia, como de vezes anteriores. Mas, lambi suas costas e senti o gosto de sal do rio. Assentei-lhe a “Professora”, apelido que se dava às palmatórias, naqueles tempos.
Era eu batendo, doutor, e aplicando-lhe as maiores descomposturas que u’a mãe pode desejar num instante de raiva. O pai viajava pelo interior e passava 20 dias fora de casa. Eu era quem cuidava dos filhos. Grande responsabilidade!
Numa das investidas, doutor, o senhor nem pode imaginar, ele encolheu a mão, que já estava doída, talvez por alguma bolada em campo, mas eu segurei com força e “bati pesado”. Com mais raiva ainda.
Por vários dias ele reclamou que havia um “caroço” na palma da mão esquerda, protuberância que foi ficando. Deve ser isso, doutor!…”
É minha senhora, se faz mais de um ano que o tal “calombo” está na mão dele vai ficar para sempre!
Carlinhos,. Zanoni e Avanildo. (1947)
Ingressei no City Bank com “calombo” e tudo. Progredi e me aposentei como bancário, depois de me transferir para o Banco do Brasil. Deixei as brincadeiras perigosas, mas dos banhos de rio só abdicquei por causa de uma tragédia.
A problemática é que as praias ficavam muito distantes de nossas casas enquanto o rio estava ali, pertinho… Uma atração irresistível para nadar atravessando o Capibaribe, de Afogados para a atual Ilha de Joana Bezerra.
Minha tropa era formada por meninos de 11 aos 14 anos sendo os mais próximos, Zanoni Pimentel, que mais tarde viria a ser Investigador da Polícia Federal e faleceu numa Operação profissional, em Brasília. Era o mais afoito, pois nadava bem e sabia pular trampolins.
Avanildo, viria a ser Gerente Geral de Cargas e Presidente do Gefuvar – Grêmio dos Funcionários da Varig – Viação Aérea Riograndense. A trinca se completava com a participação do besta aqui, que está contando histórias.
Certo dia fomos para u’a “missão” mais afoita. Éramos cinco e estávamos dispostos a pular da “Ponte de Gaiola”, por onde passava o trem da “Great Western”, que seguia a rota da Estrada de Ferro Central de Pernambuco.
Mas não imaginamos o horário em que o trem passaria pelo local.
Vários meninos subiram na ponte e pularam normalmente, mas ocorre que ao surgir o trem que vinha do Recife, tivemos que antecipar e cair n’água de qualquer jeito. Pulei de pé. Zanoni, “Marreca” e Avanildo, mais treinados, mergulharam de cabeça.
Lá vinha o trem danado apitando, como sinal de alerta. Mas, com medo, Zeca se segurou numa coluna de ferro e esperou o trem passar. Resistiria, mas a “D. Sorte” não estava com ele naquela perigosa traquinagem.
Por acaso – ou maldade do operador que se chamava “maquinista” – a máquina soltou um jato de vapor, que saindo em altos graus queimou as penas do menino, que caiu na água já aos gritos e com dificuldade chegou à margem. Resultado, queimaduras terríveis até as coxas.
Ficou adulto e nunca se livrou do estigma dessa travessura. Aquelas partes de seu corpo ficaram para sempre em “carne viva”.
Reencontramo-nos, já adultos, na Praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro. Falamos de tudo. Dos jogos de futebol, das corridas de bicicleta no Atlético, dos nossos carnavais, menos sobre os “banhos de maré” no Capibaribe. Seria difícil para ele rever tais lembranças.
Mas respeitamos sua dor. A “Ponte de Gaiola” fora para aquele inexperiente nadador, um trampolim sem glória.