Em novembro ocorreu a última edição de 2019 do projeto Taquera Por Um Dia, promovido pela Taqueria La Sabrosa, na Rua Augusta, em São Paulo, e as convidadas da vez fomos nós, Mara Salles, chef do restaurante Tordesilhas, Ana Soares, chef da rotisseria Mesa 3, e eu, aprendiz de cozinheira atrevida.
Palma (cacto), farinha de raspa de mandioca e manga verde, usadas no preparo do taco azul. Foto: Neide Rigo/Estadão
Os sócios Hugo Delgado e Carlos Tavares conheciam o histórico do trio desde o Paladar Cozinha do Brasil, onde demos várias aulas juntas – sobre amargos, invólucros, galinha de cabo a rabo, farinhas de outros os sacos, doces mas nem tanto e nossas misturas. Sabiam que não nos contentaríamos apenas em oferecer um novo conteúdo para o meio das tortillas de milho. Quereríamos mexer em tudo, inclusive na massa. E assim foi.
Entre tacos e pitacos, chegamos aos conjuntos que falavam um pouco de nós, do nosso trabalho, dos nossos desejos e das nossas trajetórias, afinal de contas, tudo cabe dentro de um disco de tortilla. Ana fez o taco de pancita y fideos – tortillas de milho recheadas de dobradinha completa e cabelo de anjo crocante, acompanhados de coalhada, vinagrete de salsão e torresmo.
O taco da Mara era quase um acarajé em verso e prosa, por isso ganhou o apelido de tacarajé – uma tortilla de farinha de feijão fradinho coberta com caruru, manjubinha frita e complementos como pasta de pimenta e molho lambão, o vinagrete baiano.
Já eu sintetizei no meu os interesses do momento – espécies, estágios e usos não convencionais, forrageio, mandioca e pigmento azul de jenipapo. As tortillas do meu taco foram feitas com farinha de raspa de mandioca, que já mereceu uma coluna Nhac!, e pigmento azul do jenipapo verde, outra coluna.
Salsa picante de manga verde. Foto: Neide Rigo/Estadão
De recheio, os nopalitos ou palma, da coluna sobre jerumbeba, que ornamentavam o jardim de uma casa vizinha, e falafel de feijão preto fermentado, ladeados com creme de abacate e coentro, molho picante de manga verde (colhidas nas praças do bairro), grolado de mandioca com puba (eu mesma fiz) e folhinhas de epazote, epa, mentruz do quintal. E, a quem possa interessar, era vegano, sem glúten, sem açúcar e tinha pouca gordura.
É mais simples do que parece, embora não muito comum, por isso, atendendo a pedidos, resolvi dedicar esta coluna à explicação do processo todo. Espero que ao final você tenha recebido a motivação necessária para criar também o seu taco.
Vale dizer, para quem não sabe, que no México tortillas são discos chatos e flexíveis de milho com os quais se fazem tacos. Tortilla seria o similar ao nosso pão, e o taco, o sanduíche. As tortillas de milho são as mais populares, mas no norte também são feitas de trigo. Como sabemos, o milho carece de coesão e flexibilidade, mas os grãos usados nas tortillas passam antes por processo de nixtamalização, que é o cozimento em água alcalina – com cal, a mesma usada por aqui nos doces de frutas cristalizadas, embora o processo seja outro.
Com isso, a massa resultante do milho triturado torna-se mais gelatinosa, elástica e flexível, perfeita para os discos que são cozidos rapidamente na chapa dos dois lados. A técnica é trabalhosa e poucos mexicanos fora da zona rural fazem isso em casa, pois há no México moinhos elétricos espalhados pelas cidades para onde se pode levar o milho nixtamalizado em casa para triturar. E também há farinhas instantâneas e pacotes com as tortillas prontas para esquentar em casa.
Taco azul com nopalitos, falafel de feijão preto e molho picante de manga verde. Foto: Lucas Terribili
Para um clássico taco mexicano, é importante que se tenha pelo menos três elementos: a tortilla, o conteúdo e uma salsa, como se diz de um molho geralmente apimentado e denso. E, como regra de comportamento, claro, sempre se come com as mãos.
Como mesmo no México o atrevimento renovado impulsiona a criação de novos sabores e cores para as tortillas e os tacos o tempo todo, não me acanhei em usar a nossa mandioca. Achei perfeita a farinha de raspa, a farinha dos Guarani – nada mais que lascas de mandioca desidratadas e trituradas, também encontrada como cassava flour no mercado nacional e internacional de produtos sem glúten. A água quente ajuda a massa a ficar ainda mais modelável.
Para o azul, uma homenagem às tortillas mexicanas de milho azul, substituí parte da água por leite azul de jenipapo – a receita está na coluna sobre pigmentos. Em vez de tortillas azuis, poderiam ser verdes, feitas com chaya ou nopal; rosa, feita com pitaia ou caldo de beterraba; vermelha, com pimenta; amarela, com cúrcuma etc.