15 de setembro de 2020 | 05h00
Criador de uma das linguagens mais particulares da música brasileira, Tom Zé acaba de ter a produção menos visível de um importante período de sua vida, compreendido entre 1969 e 1976, organizado pelo pesquisador e jornalista do Estadão, Renato Vieira. O álbum Raridades traz 14 faixas de gravações que poucos ouviram recuperadas dos arquivos das companhias RGE e Warner, que hoje detém os registros da Continental.
Tom gravou alguns compactos simples e canções para projetos especiais que não tiveram vida longa ou se tornaram apenas versões para colecionadores. Dispostas cronologicamente, é possível entender o desenvolvimento de seu pensamento musical desde o momento posterior à sua vitória no IV Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, até o ano em que lança Estudando o Samba, o álbum que levaria 14 anos para ser valorizado, a partir de um lançamento feito pelo roqueiro David Byrne. João Araújo, que viria a ser um dos criadores da Som Livre, havia acabado de levar Tom do selo AU, Artistas Unidos, para a RGE. Sua estreia, recuperada por Renato Vieira, foi justamente com um compacto simples que trazia Você Gosta, uma parceria com Hermes de Aquino, no lado A, e Feitiço no B, as duas com arranjos do maestro Severino Filho.
“O mercado exigia esse formato, o compacto. Era uma forma de vender as músicas que iam para os festivais. Só depois, eram lançadas em LPs”, diz o jornalista. Outra passagem por um festival viria logo depois, com duas músicas inscritas agora no V Festival de MPB da TV Record. Tom competia com Jeitinho Dela e Bola Pra Frente, que seriam gravadas às pressas também em compacto. Jeitinho Dela tem um sabor ainda mais especial: registrada ao vivo no festival, Tom Zé, em versão raríssima, canta ao lado dos Novos Baianos, grupo que devia uma porção de sua existência a ele. Foi Tom quem apresentou Moraes Moreira, o motor intelectual da formação, ao poeta Luiz Galvão.
“Pensei em montar em ordem cronológica para o ouvinte acompanhar como se desenvolve a linguagem do artista. Com o passar do tempo, lá por 1970, 1971, ele se aproxima mais do bolero e do samba”, diz Renato. Além da percepção estética, os movimentos são regidos também pelo contexto social, colocados sempre em crítica contundente e indireta.
Competições de Hebe. Foi de mais uma participação em um concurso, desta vez o Movimento de Incentivo à MPB, feito pela apresentadora Hebe Camargo, na TV Record, de onde saiu mais um single. Silêncio de Nós Dois, vencedora da competição, entrou como a faixa principal. E Senhor Cidadão ficou no lado B antes de ser lançada em LP. “Eu queria falar sobre a segregação que o homem das classes A e B exercia sobre os outros. E também do castigo que sofria por isso”, lembra o cantor. “Senhor cidadão / Na briga eterna do teu mundo / Senhor cidadão / Tem que ferir ou ser ferido / Senhor cidadão / O cidadão, que vida amarga / Que vida amarga.” Havia inquietude de Tom também em A Babá, expondo à sua maneira os confrontos dos tempos: “Quem é que agora está / Botando tanto grilo na cabeça do século? / Ô de marré, de-marré-de-ci / E quem é que tá / Botando piolho na cabeça do século?”
Assim como A Babá, Augusta, Angélica e Consolação também foi gravada antes, em outra versão, colocada em um compacto simples.
O álbum de raridades traz ainda Quem Não Pode Se Tchaikovski, que havia sido lançada apenas no lado B do compacto com Augusta, Angélica e Consolação, com uma construção singular que une trechos do Concerto para Violino e Orquestra em Ré Maior, op. 35, de Tchaikovski a sonoridades nordestinas. Contos de Fraldas veio de um compacto de 1974, A Dama de Vermelho foi pedida para a novela Xeque-Mate, de 1976, e O Anfitrião, que como Dói aparece na voz de Betina, foi um desafio feito pela primeira vez por Lupicínio Rodrigues: “Por que você não faz uma música de dor de cotovelo?” Betina, que gravou as duas canções que aparecem como bônus, era uma cantora descoberta pela empresária Mônica Lisboa, sucessora de Guilherme Araújo, que pediu a Tom para fazer algo que a projetasse, algo que não aconteceu.