RIO - Numa visita ao Brasil, na casa dos 20 e poucos anos, o jornalista italiano Pietro Scaramuzzo ouviu pela primeira vez a canção “Frevo (Pecadinho)”, de Tom Zé : “Esta noite não quero saber de conselho/ Esqueça, deixe pra lá/ Me arranja um pecado”. A malícia buliçosa do ritmo pernambucano e a letra que suplica por um pecadinho, no diminutivo carinhoso, aguçaram a sua curiosidade sobre quem teria escrito aquilo.
— Gostei do “Pecadinho” como ideia de libertação — conta o jornalista de 37 anos.
“Astronauta libertado” (como escreveu Tom Zé em “2001”), Scaramuzzo assina a primeira biografia do compositor : “Tom Zé, l'ultimo tropicalista” (ADD Editore), que será lançada no dia 2 de outubro (por enquanto, apenas na Itália, mas “estamos paquerando editoras brasileiras”, adianta o autor). O prefácio é de David Byrne , o responsável por ter tirado o baiano do ostracismo no início dos 1990.
— Na biografia, você vê, como me disse Rita Lee, “o cara que chegou do planeta Sertão, se encantou com o desvario da Pauliceia, misturou macaxeira com gasolina, e incendiou o panorama musical” — diz Scaramuzzo.
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Por que Tom Zé?
Escrevo sobre música brasileira numa revista na Itália chamada “Musica jazz” e no site Nabocadopovo.it. Quando marquei a primeira entrevista com ele foi para esses projetos. Tom Zé me recebeu na casa dele e, antes que eu pudesse fazer a primeira pergunta, ele já estava me explicando as teorias sobre o tropicalismo. A complexidade teórica que ele me mostrou ia muito além da música, alcançando conceitos filosóficos, literários que pertenciam a um universo cultural até então desconhecido por mim. Por curiosidade, senti a necessidade de pesquisar mais. Quando vi tinha tanto material que talvez desse um livro.
Por que o título “L'último tropicalista”?
O título se refere à época de seu ostracismo, vi o artista como o remanescente, aquele que mantinha conceitos e linguagem que o movimento propunha na época. Conceitos que incluem o antropofagismo da cultura musical internacional e a preservação das raízes culturais brasileiras. É o famoso “misturar chiclete com banana”. Na música de Tom Zé esta mistura insólita é constantemente presente e se renova a cada disco.
Como foi a pesquisa?
Procurei conteúdo jornalístico brasileiro e internacional que citava Tom Zé, vídeos de entrevistas e performances, entrevistei Caetano Veloso, David Byrne, Gilberto Gil, Rita Lee, Arto Lindsay, Luiz Tatit, Washington Olivetto, Zé Miguel Wisnik, entre outros. Quase que diariamente, por 12 meses, consultei o acervo mais importante e completo, que é a memória dele. Tive a oportunidade de ler as cartas que Byrne e Tom Zé trocaram e de dar uma olhada no álbum de família de Tom Zé, o que tornou familiares a mim personagens do livro.
“Um dia, na gravadora, Tom Zé convenceu os artistas a soprar umas canetas que tinha cortado em diferentes comprimentos para obter diferentes sons. O experimento impressionou a todos, Byrne inclusive, pelo resultado harmônico inesperado”
O que descobriu sobre ele?
Tom Zé, o ser humano, que vem antes do artista. No livro você vai conhecer Antônio José, seu nome de batismo, criança medrosa e acanhada. Vai poder apreciar as relações dele com a família em Irará e a cumplicidade profunda entre Tom Zé e Neusa, sua esposa. Tem anedotas sobre a experiência americana dele, que me foram contadas em primeira mão por David Byrne e mostram de um lado a simplicidade dele como ser humano e, de outro, a genialidade de um artista refinado.
Que tipo de anedotas?
Um dia, na gravadora, Tom Zé convenceu os artistas que estavam lá a soprar umas canetas que ele tinha cortado em diferentes comprimentos para obter diferentes sons. O experimento, que inicialmente causou estranhamento, acabou impressionando a todos, Byrne inclusive, pelo resultado harmônico inesperado.
Em que medida as letras de Tom Zé são reveladoras?
Foi imprescindível partir das letras para desenhar alguns momentos da vida dele. “Os doidos de Irará” tem basicamente a Irará que ele viveu. “Mãe solteira” foi composta para a irmã dele. Quando falo do disco “Correio da Estação do Brás”, inspirado na imigração nordestina para São Paulo, é evidente que tem muito das vivências de Tom Zé como nordestino imigrante.
“Acho que Tom Zé oferece uma linguagem musical universal. Como diz Byrne, a sua música poderia ser feita por um cara de Berlim, ou de Nova York”
Em que difere o Tom Zé que você conhecia antes do livro e do que conhece hoje?
Antes eu o via como um artista genial. Após esse trabalho, além da genialidade vejo o homem doce, frágil, às vezes ansioso, enérgico, agudo, inspirador. E é esse Tom Zé que gostaria que quem lesse a biografia conhecesse também.
Um americano, David Byrne, foi o responsável por tirar Tom Zé do ostracismo. Um italiano publica agora sua primeira biografia. Por que você acha que os estrangeiros têm um olhar especial sobre Tom Zé?
Porque, como dizem vocês, a grama do vizinho é sempre mais verde. Brincadeiras à parte, acho que Tom Zé oferece uma linguagem musical universal. Como diz Byrne, a sua música poderia ser feita por um cara de Berlim, ou de Nova York.