Não é preciso ser fã de cinema nacional para conhecer longas que conseguem exprimir, por meio de seus personagens, a vasta diversidade cultural — e linguística — do Brasil. Do sossegado "não sei, só sei que foi assim", de Chicó, em O Auto da Compadecida, ao marrento "meu nome agora é Zé Pequeno, por**", em Cidade de Deus, temos acesso à representação (ficcional e, por isso, passível de estereótipos) de determinados grupos pela forma como se comunicam.
E em Brasília, isso também acontece? Podemos dizer que aqui existe tal variedade? Bom, para responder a essa pergunta, é preciso considerar a recente, mas imponente, história da capital. Se você é brasiliense em torno dos 20 ou 30 anos, provavelmente tem avós que vieram de outros estados e pais que se recordam de escutar Legião Urbana no rádio; na escola, estudou sobre JK e fez passeios pelos monumentos da cidade. Hoje, quando você pensa acerca dos sotaques, percebe-se, possivelmente, com um falar "neutro".
Para além do "véi"
Um dos maiores prazeres da geofísica Aline Pádua, 31 anos, é certamente viajar. Sempre que pode, prepara as malas e coloca o pé na estrada, mesmo que seja a trabalho. Quando o sotaque dos lugares em que visita costuma ser mais marcado, é logo percebida pelos moradores locais, por conta da sua fala, como turista. Em nenhuma das situações, porém, conseguiu ser identificada como brasiliense.
Para a jovem, isso se deve ao fato de Brasília ainda não ter um sotaque bem definido e com características próprias. "Acredito que, até o momento, a mistura de outras variedades linguísticas persiste na cidade", completa. Em seu contexto, inclusive, cresceu com influência dos falares de Pernambuco, proveniente dos pais, e de São Paulo, oriundo dos primos. Destes últimos, que visita frequentemente, adquiriu a gíria "mano".
"Percebo que meus pais, como estão há mais de 30 anos aqui, perderam grande parte do sotaque, com resquícios apenas na pronúncia", comenta. A abertura das vogais /e/ e /o/, por exemplo, como quando falamos a palavra "ElEgante", desapareceu. Já o traço de alçamento das vogais, isto é, a articulação dos sons /e/ e /o/ como /i/ e /u/, respectivamente, manteve-se. Neste caso, eles pronunciam "querida" e "gordura" como "quirida" e "gurdura".
Já com relação ao seu próprio dialeto, se comparado aos demais, Aline destaca estar no vocabulário a maior diferença. O "véi" está presente na fala há tempos e recorrentemente. "Tesourinha", "pardal", "balão" completam a lista. Vale lembrar que tais palavras podem ser consideradas como características daqui, pois possuem significados distintos daqueles de origem, gerando confusão em quem visita a capital.
Afinal, Brasília tem ou não tem sotaque?
Segundo a sociolinguista, professora da Universidade de Brasília (UnB) e brasiliense "com orgulho" Rosineide Magalhães, sim, a capital tem sotaque! E, diferentemente do que o senso comum classifica como neutralização, o processo ocorrido em nosso dialeto chama-se focalização. Trata-se da escolha, inconsciente, do falante pela suavização na pronúncia do "s" e do "r", que, na variedade carioca, por exemplo, é bastante perceptível. Ademais, a forma de falar não é tão cantada ou arrastada, como nos dialetos do Sul.
Para Cíntia Pacheco, pesquisadora e professora da UnB e coordenadora do Projeto Variação Linguística no Centro-Oeste (Valco), o sotaque brasiliense, de uma forma geral, é menos marcado, como o de um apresentador de telejornal nacional. As influências das variedades de vários lugares do Brasil ocorreram em peso nas duas primeiras gerações, em um processo conhecido como difusão dialetal.
As pesquisadoras concordam que, no que tange ao léxico, as maiores variações estão relacionadas ao trânsito e aos meios de transporte, como nas palavras "pardal", "zebrinha", "baú" e "camelo". Além disso, abreviaturas como "bacu", "cachu" e "perifa" são comuns, somadas às gírias "véi", "cabuloso" e "tá de boa". Em relação à morfossintaxe, o emprego do pronome "tu" sem concordância (neste caso, um processo comum na maior parte do Brasil) é também uma marca do dialeto brasiliense.
Miscelânea cultural
Conforme o estudo A fala brasiliense: origem e expansão do uso do pronome tu, da pesquisadora Carolina Andrade, a constituição de Brasília é oriunda especialmente de Minas Gerais, de Goiás e de estados nordestinos. Em 1960, a maioria da população era da região Nordeste (42%), seguida do Sudeste (31%), Centro-Oeste (23%), Sul (2%) e Norte (1%). Em 2009, metade da capital já era proveniente do próprio DF.
Com o tempo, mais brasiliense e menos carioca
Dayse Gonçalves Zottich, 60, e Marcos Aurélio Pereira Zottich, 63, estão na capital federal há duas décadas. O casal carioca veio para Brasília pela primeira vez em 1988, ficando cerca de oito anos em terras candangas. Novamente, em 2000, os dois vieram para ficar, dessa vez fixamente.
Marcos, na época, era oficial do Exército. Hoje, com ambos aposentados, eles aproveitam as belezas que o fizeram se apaixonar pelo quadradinho. "O que eu mais gosto daqui é essa imagem, esse visual do horizonte, as coisas bem abertas, o ar livre é maravilhoso. Por mais que tenha muito trânsito, a gente olha pro lado e não se sente preso nem apertado", complementa Marcos.
Tanto marido quanto esposa, em razão do longo tempo morando longe do Rio de Janeiro, ressaltam que o sotaque foi se esvaindo no decorrer dos anos. Apesar de muitas pessoas ainda conseguirem identificar o "carioquês" quando eles se comunicam, o tempo tratou de deixá-los mais brasilienses do que cariocas.
De família nordestina, Marcos, no entanto, conta que nunca teve uma fala muito carioca. Ele descreve que o pai, que trabalhava como vendedor, viajava bastante por conta da profissão. Com isso, viveu boa parte da adolescência no Recife. "Mesmo assim, amigos ou até desconhecidos com quem a gente conversa me perguntam se sou carioca", enfatiza.
Apesar das décadas acumuladas na capital do país, Marcos reitera que nunca se identificou muito com a forma de falar do brasiliense. Camelo, tesourinha e outras gírias mencionadas por ele mal entram em sua cabeça. Por isso, em contramão a esse linguajar, o que ele mais absorveu da cidade projetada por Niemeyer é o estilo de vida. Algo que o militar aposentado não quer abandonar. "Curtir o pôr do sol, caminhar no Eixão, frequentar o Lago Paranoá no domingo. Essas são as coisas que realmente aprendemos", afirma.
"O meu sotaque virou militância"
Quando chegou a Brasília, há duas décadas, a escritora e jornalista Waleska Barbosa, 47 anos, havia acabado de se formar. Com grandes expectativas profissionais, veio à capital acompanhada de uma mala, duas caixas de livros e muitos sonhos. A caminhada não foi fácil e foram poucos as ocasiões em que não escutou a pergunta "por que você não perdeu o seu sotaque?"
Natural de Campina Grande, na Paraíba, aos poucos, ela aprendeu a devolver a questão: "Por que preciso perdê-lo? Você faz essa mesma pergunta a uma pessoa do Rio de Janeiro, por exemplo?". A ciência da resposta só reforçava o que já sabia — e sentia. A exclusão pelo som da sua voz dizia muito sobre o preconceito racial, regional e, principalmente, linguístico dos outros.
Certa vez, numa entrevista de emprego em uma emissora de televisão, o diretor, ao ler alguns dos seus textos, ficou maravilhado e disse-lhe que ninguém escrevia como ela. Quando escutou sua voz, porém, desistiu de lhe contratar. Noutra ocasião, foi impedida de gravar programas de rádio que havia produzido e montado. "Os programas eram os melhores. Mas a voz não podia ser a minha", recorda-se. Aventurar-se, profissionalmente, a falar "com a boca", como pontuou, foi um desafio, justamente pelos traumas relacionados à discriminação. Mas Waleska não se rendeu.
Em 2021, publicou o livro Que o nosso olhar não se acostume às ausências, no qual aborda, por meio de crônicas, prosas poéticas e poemas, questões como os amores e afetos, a violência e o feminicídio objetivo ou simbólico, a maternidade solo, o genocídio do povo negro e o racismo. No texto "A falta", destrincha parte da relação com seu sotaque, quando diz: "Ando sempre ostentando, com orgulho, um 'nordestinês', com o qual me dou muito bem e tenho intimidade". Hoje, para a escritora, sua voz ecoa. É voz.
Meu sotaque, minha marca
Em busca de novas oportunidades de vida e qualidade de estudo, Maria Paula Lopes Gaspar, 21 anos, veio do Amazonas para morar com a irmã, que se mudou para o quadradinho há alguns anos. Estudante de relações internacionais, ela acredita que Brasília proporciona mais possibilidades profissionais. "Muita oportunidade de emprego, aqui tem concurso público e afins. Enfim, estou gostando muito daqui", menciona.
A jovem, que reside na Asa Norte, também gosta do ar livre e da liberdade que a área central do Distrito Federal dispõe. A beleza da arquitetura a céu aberto, além das pedaladas de bicicleta ouvindo música são outras formas de lazer que ela diz não ter encontrado em sua cidade natal.
Desde que chegou à capital federal, em março de 2021, Maria Paula conta que o sotaque chiado não diminuiu. Mas, naturalmente, o convívio com colegas brasilienses enraízam gírias e trejeitos que só são encontrados no DF. Mesmo assim, a fala típica da região Norte ainda permanece intacta, especialmente quando ela visita o Amazonas. "Assim que eu volto de lá, meu sotaque fica 'pior', digamos assim. Mas é porque temos muitas gírias, aqui não tem tanto quanto no Amazonas", completa.
E mesmo morando há pouco tempo em Brasília, a jovem destaca que ainda não sabe ao certo qual é o verdadeiro sotaque do brasiliense. Para ela, a mistura na hora de se comunicar, que vai do jeito mais culto ao mais informal, deixa a percepção um pouco bagunçada, pelo menos no momento de definição sobre esse tal linguajar.
Além disso, uma curiosidade percebida pela jovem é que os moradores de Brasília são mais reservados, pelo menos quando comparados a pessoas naturais de outros estados. "Acho o pessoal daqui totalmente fechado. E eu, bom, sou totalmente o inverso. Faço amizades, falo logo, e eles não, são mais na deles."
Simpatia pelo 'quadradinho'
Juliano Tassinari, 30, veio do Rio Grande Sul há pouco mais de um ano e meio, para expandir seus negócios como empreendedor. Assim como Maria Paula, devido à recente estadia, confessa não ter adquirido tantos trejeitos candangos. "Ainda tenho muito contato, diariamente, com pessoas do meu estado. Mas, aqui, muitas pessoas me perguntam se sou gaúcho", descreve.
Entretanto, os indícios de que as coisas estão mudando começam a tomar forma. O tradicional "tu" usado pelos gaúchos, — inclusive por ele — tem dado lugar para o popular "cê", abreviação muito utilizada na capital. Juliano detalha que tem falado bastante e, muitas vezes, totalmente sem perceber.
Mesmo com a saudade de casa e acreditando que o linguajar candango é realmente diferente, Juliano apega-se ao delicioso chimarrão, que não abandona em nenhum dia. Porém, a dificuldade em encontrar a erva natural da bebida pelas regiões centrais é um obstáculo. Mas, quando acha, a felicidade é tremenda.