Numa noite de 1979, o produtor e agente musical Roger Davies estava no então badalado bar do histórico hotel Fairmont de São Francisco quando teve um susto: no pequeno palco do lounge estava alguém que ele tinha visto muitas vezes, anos atrás, em teatros, arenas e festivais: Tina Turner. Entre 1960 e 1976, Tina era a estrela da banda Ike & Tina Turner Review, uma locomotiva poderosa de rhythm’n blues, soul e rock’n roll liderada, oficialmente, pelo guitarrista/compositor/produtor Ike Turner, marido de Tina. Na verdade, a banda era efetivamente guiada, no palco, pela fornalha da voz e da presença de Tina.
Essa era a Tina que Roger Davies conhecia. Mas, fora do palco, a vida de Tina era o oposto, um sem-fim de opressão e violência, sob a tirania de Ike. Em 1976, Tina seguiu seu próprio rumo depois de um divórcio tão cruel e violento quanto sua vida de casada. Sua carreira parecia ter chegado ao fim — três álbuns solo não tiveram repercussão e, para se sustentar, Tina passou a se apresentar no circuito de bares e lounges.
— Essa era a história que queríamos contar — diz Simon Chinn, um dos dois irmãos produtores responsáveis pelo documentário “Tina”, exibido nos Estados Unidos pela plataforma HBO Max, que estreia dia 29 no Brasil. — Mas não queríamos contar só esta parte da vida de Tina. Queríamos abordar toda a vida dela, nos cumes e nos vales de tudo que ela passou.
Simon e Jonathan Chinn tiveram seu primeiro contato direto com a cantora quando produziram o material promocional do musical “Tina”, em Londres e, depois, em Nova York, em 2018 e 2019.
— Nossas conversas com Tina e Erwin (Bach, marido de Tina desde 2013 e seu parceiro desde 1986) não foram no sentido de papéis e legalidades — continua Simon Chinn. — Foram para assegurar que ela seria nossa parceira, que o filme respeitaria sua privacidade, e que ela tinha o controle dos limites da narrativa.
As conversas valeram a pena — “Tina” mergulha plenamente na intimidade da artista: a família, a mãe distante, os filhos problemáticos, o primeiro marido violento, as humilhações, a volta por cima, os momentos de gênio no processo da criação da coreografia e de toda a apresentação que, anos mais tarde, seria quase padrão.
— Vou confessar: T.J. e eu ficamos paralisados quando começamos a nos preparar para entrevistar Tina — diz Daniel Lindsay, que, com T.J. Martin, dirigiu o documentário. — Nossa proposta aos produtores foi a de fazer, primeiro, uma entrevista profunda com ela, no tempo que ela concordasse em nos dar. Queríamos que a narrativa dela fosse a espinha da obra. Faríamos a pesquisa a partir disso. Mas, quando nos demos conta de que íamos realmente conversar com ela, bateu uma espécie de pânico, porque ela é uma grande estrela, uma estrela de verdade.
O codiretor T.J. Martin completa:
— Ela se abriu conosco. Tínhamos dito para nós que deveríamos ser supercuidadosos com ela, não tocar nos momentos difíceis da vida dela. E Tina nos surpreendeu logo no começo: ela mesma abordou todos os seus piores momentos, sem poupar nada. Foi uma revelação. Foi o modo dela de nos dizer: “Já passei por tudo isso, já processei todo o meu trauma, agora quero que vocês me vejam como uma pessoa que já superou tudo isso e está pronta para compartilhar esta história”.
Imagens jamais vistas
Para manter a privacidade, as entrevistas gravadas em imagem foram feitas numa mansão, cedida por um amigo do casal, no Centro de Zurique — Tina mora na Suíça desde 1994 e em 2013 tornou-se cidadã do país. As entrevistas em áudio foram feitas na residência da artista e, num breve momento, há uma tomada da casa do casal em Küsnacht, às margens do lago que faz parte da propriedade.
Tina também cedeu boa parte de suas imagens pessoais, tanto fotos quanto vídeos — inclusive uma cena muito íntima, em que ela faz sua prece budista diária, uma prática que abraçou em 1973 e que, segundo a cantora, mudou sua perspectiva de vida, primeiro como uma forma de se proteger da violência de seu casamento.
Muitas imagens jamais vistas do interior da primeira casa de Tina, em Los Angeles, nos anos 60, se devem ao cineasta brasileiro Flavio Florêncio, que, nos anos 70, conseguiu filmar a residência por dentro e por fora, antes que ela fosse demolida.
— É um material incrível, um plano-sequência que ele teve a sorte e o talento de fazer — diz Simon Chinn. — Esse material foi essencial para nosso filme.