Símbolo nacional da liderança feminina contra a colonização, Tereza de Benguela foi uma mulher negra que viveu a experiência de liberdade dentro da estrutura escravocrata do Brasil. No século XVIII, ela habitava o território correspondente ao atual estado do Mato Grosso e, por ao menos 20 anos, chefiou o Quilombo do Quariterê, uma comunidade da qual pouco se sabe, além do que dizem dois manuscritos, que registraram justamente a destruição do aldeamento, em 1770.
Descrita e comparada com as rainhas africanas conhecidas à época, os registros indicam que as autoridades coloniais envolvidas em eliminar o quilombo não deixavam de ver Tereza como uma figura imponente. O nome dela aparece na história como alguém que, durante a vida, lutou contra a escravidão, motivo pelo qual virou representante do Dia da Mulher Negra no Brasil, que, desde 2014, ocorre em 25 de julho.
— Isso nos faz pensar que a liderança feminina pode não ter sido exceção na luta cotidiana contra a escravidão, embora seja difícil encontrar documentos de outras mulheres na mesma posição — disse a historiadora e professora da PUC-Rio Crislayne Alfagali ao GLOBO. — Talvez, lembrar de Tereza de Benguela seja lembrar que, assim como houve escravidão, também existiu resistência.
De Benguela ao Quariterê
Em um período de forte busca por ouro, o tráfico entre Rio de Janeiro, Luanda e Benguela — localizado onde hoje é o país de Angola — foi intensificado no século 18. De acordo com a historiadora, Tereza foi uma das muitas escravizadas que, nesse contexto, veio da África Centro-Ocidental em direção às regiões de mineração no território brasileiro.
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Também conhecido como Quilombo do Piolho, o Quariterê era organizado por uma estrutura política composta por um parlamento. Com a população estimada em cerca de 100 pessoas, incluindo negros e indígenas, havia, ainda, um sistema de defesa armada, que o preservou por 20 anos. O local servia de base para o cultivo de algodão, milho, feijão e mandioca, e os tecidos produzidos eram comercializados com os colonos.
— No quilombo, havia plantação de algodão, produção de tecido e metalurgia. Isso é interessante, do ponto de vista da organização, pois dá a ideia de uma região autossustentável, que reúne um conhecimento que, por certo, vem da África — comentou a professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) Maria Cláudia Cardoso.
A rainha ‘viúva’
Embora a trajetória e construção do quilombo sejam marcadas pela existência de lacunas na história, Maria diz que existem duas narrativas principais sobre a liderança de Tereza. A primeira seria a de que ela teria comandado o Quariterê ao lado de um companheiro, conhecido como Piolho. Já outros documentos afirmam que Tereza assume o papel quando ele é assassinado pelos colonos.
Apesar de ser definida como rainha em alguns manuscritos, a existência de Tereza também é mencionada de maneira despótica em outros escritos, como se ela tivesse sido uma mulher de hábitos maquiavélicos. Nas histórias, que viraram lendas, ela teria mandado enterrar pessoas vivas, enforcar e quebrar as pernas de quem questionasse sua autoridade. Em ambos os casos, ela foi registrada como uma líder importante, cercada por servos e indígenas.
Como o restante da história, a morte de Tereza também é composta por incertezas. Segundo a professora da PUC-Rio, a primeira investida na destruição do quilombo ocorreu em 1770, e, na ocasião, ela teria tentado fugir a cavalo, provavelmente ao lado de um soldado, mas caiu no rio e foi pega por soldados coloniais. Uma outra versão diz que ela teria tirado a própria vida ao perder o embate com os portugueses.
— Dizem que ela morreu assustada. Não sabemos ao certo o que isso significa, mas a cabeça dela foi cortada e colocada no centro de seu antigo quilombo como uma forma de mostrar o ‘exemplo’ do que ocorre com pessoas que lutam contra a administração colonial.
Uma heroína de carne e osso
Ainda que Tereza represente parte importante da história do Brasil, o nome dela não faz parte do imaginário popular. Para a historiadora Idalina Freitas, também professora da UNILAB, isso pode ser justificado em parte pela ausência de documentos, mas, principalmente, pelas questões que envolvem o fomento à pesquisa no país.
— Há o recorte de raça, classe e gênero na história. Para mim, isso é o principal ao pensar no desconhecimento desses personagens. Isso pauta a memória nacional, de quem deve ser lembrado e esquecido. Só conseguimos descobrir essas coisas com pesquisa, e, para isso, é preciso ter dinheiro.
Entre as conquistas, Idalina ressalta a lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos ensinos fundamental e médio. No entanto, para ela, é importante que esse aprendizado também faça parte da educação básica e estimule a curiosidade para que esses personagens sejam conhecidos.
— Temos um vício, na educação, de construir narrativas de pessoas que são inalcançáveis. Mas acho que a história deve ser um espelho que reflete as pessoas do presente. Quantas Terezas de Benguela também vivem hoje, criando filhos, os levando para a escola e tentando ter moradia e emprego para sobreviver? Tereza foi uma heroína de carne e osso, uma pessoa comum.