08 de setembro de 2021 | 05h00
O choque foi grande: o elenco de 38 atores estava com as cenas preparadas, os efeitos especiais (principalmente o mais aguardado, o voo do elevador de vidro) devidamente ensaiados, vários ingressos foram vendidos antecipadamente, mas a estreia de Charlie e a Fantástica Fábrica de Chocolate, o Musical não aconteceu na data prevista, em março do ano passado – o acirramento da pandemia da covid levou ao fechamento de todas atividades culturais.
“Foi um baque profundo, mas o período isolado nos permitiu entender ainda mais o espetáculo”, comenta a atriz Sara Sarres, uma das estrelas do musical, que estreia no dia 17 de setembro e em casa nova: o Teatro Renault – em 2020, seria no Teatro Alfa, mas o espaço está agora com a agenda comprometida e não foi possível.
Sua intenção, ao liberar o passeio pela fábrica, é encontrar uma criança desprovida de defeitos e ambições e que será eleita seu sucessor. Mas no grupo do qual Charlie faz parte encontram-se meninos e meninas egoístas, gulosos, invejosos e desobedientes que, por isso, terminam punidos e desclassificados. Nenhum deles tem os atributos que Willy Wonka enxerga em si mesmo, quando ele próprio era uma criança.
“São valores universais que, nos dias de hoje, ganham ainda mais relevância”, acredita o ator Cleto Baccic, que interpreta Wonka. “O espetáculo nos coloca diante de nossos limites e mostra que, apesar da mudança de conceitos, a responsabilidade pelos atos continua imprescindível.”
“O texto mostra a consciência necessária que cada um precisa ter com seus atos”, continua Rodrigo Miallaret, intérprete de Joe, o avô que acompanha Charlie na visita à fábrica. “Quando alguém quebra as regras, precisa saber que haverá consequências.”
“É por isso que tudo o que acontece em cena tem um propósito”, completa Sara, para quem o espetáculo ajudará especialmente os adultos a refletirem sobre seus valores. “Afinal, as crianças se tornam reflexos de seus pais, o que torna ainda mais importante um cuidado com os próprios atos.”
“Além de mostrar os erros, o espetáculo também aponta para os caminhos certos, pois Wonka é uma espécie de líder moral”, observa John Stefaniuk, canadense que está no Brasil para cuidar da direção geral do musical, que conta com 38 atores em cena, além de uma orquestra com 16 músicos. Ele tem experiência no gênero, com participação em importantes montagens como O Rei Leão e Billy Elliot, mas Charlie é seu primeiro trabalho como diretor – e Stefaniuk já deixará sua marca.
A começar pela construção de um Willy Wonka engraçado, irônico e repleto de emoções. “A versão da Broadway não me agrada por ser um tanto fria e a de Londres é muito espetacular – teremos aqui uma terceira opção.”
Assim, ao mesmo tempo que não se esquece dos importantes valores morais pregados pelo texto, Stefaniuk aposta na diversão e no deslumbramento, sensações que a plateia compartilha com as crianças ao conhecer a fábrica de Wonka. E, para isso, montou um espetáculo que promete surpreender.
A começar pelos efeitos especiais – além da fonte de chocolate, do laboratório de miniaturização e da sala de esquilos, um momento esperado é o da menina que infla depois de comer algo proibido. E outro é o voo que Wonka e Charlie fazem em um elevador de vidro e que sobrevoa o palco, projeto criado pela empresa Fly by Foy.
Para simular com exatidão o desaparecimento das crianças, serão usados oito projetores de ponta, além de um gigantesco painel de LED. E impressionante também promete ser o cenário criado pelo veterano americano Michael Carnahan que, com 15 metros de altura, será o maior construído no Brasil.
Além de Wonka e das crianças, quem também chama atenção são os Oompa Loompa, pequenos seres que trabalham na fábrica – em cena, são bonecos criados pela designer alemã Bea Brandauer e que são manipulados pelos pés e mãos dos atores.
Os personagens infantis são interpretados por três crianças cada um, que se revezam a cada apresentação. “Adoro trabalhar com elas, pois são honestas em suas respostas e, mais importante, não têm ego inflado”, observa Stefaniuk. “Também a orquestração traz um toque brasileiro, com citação da obra de Ary Barroso”, comenta o diretor musical Daniel Rocha, que elogia a melodia originalmente criada por Marc Shaiman. “Enquanto o primeiro ato é mais operístico, o segundo é mais cartunesco, com sons típicos de desenho animado.”
A história de Willy Wonka ganhou duas versões no cinema: a de 1971, dirigida por Mel Stuart, e a de 2005, com a assinatura de Tim Burton. E, se ambos preservaram a essência do livro de Roald Dahl, especialmente seu aspecto moral, o mesmo não se pode dizer do protagonista da história.
Na versão de Burton, o peso de sua parceria com Johnny Depp (intérprete do dono da fábrica de chocolate) foi decisivo - ao longo dos anos, o estilo gótico e, ao mesmo tempo, deslumbrante do cineasta encontrou plena ressonância na interpretação de Depp, que se acostumou a dar vida a tipos diferentes. Não foi diferente com Willy Wonka: com uma peruca e uma dentadura, o ator criou um personagem por vezes bizarro, reduzindo as atitudes estranhas de Wonka (na verdade, todas têm um propósito moral) em algo simplesmente esquisito - houve quem sugerisse que ele teria se inspirado em Michael Jackson. “Não me agrada a versão criada por Tim Burton”, comenta John Stefaniuk, responsável pela direção geral do musical brasileiro. “Sinto uma falta do humor, especialmente no personagem de Depp, e as ações punitivas nas crianças não transmitem a mensagem correta.”
A versão de Burton também é mais explícita, contando, em flashbacks, a origem de Wonka e seus problemas familiares (ele não consegue, por exemplo, dizer a palavra “pai”, o que dá a real dimensão do problema). E, se Depp confere um ar mais infantil ao personagem, o mesmo não se pode dizer de Gene Wilder, grande comediante que viveu Wonka na versão de 1971.
Mais enigmático e, portanto, com características mais adultas, sua interpretação oferece um personagem mais simpático às crianças, mesmo sendo, em alguns momentos, arredio. E a interpretação selvagem de Wilder vai na contramão da afetação da de Depp. Com isso, ele cria um protagonista mais complexo e, assim, menos palatável para o público infantil. Nisso reside o mérito de Burton, que trata de temas profundos com a simplicidade das crianças. O que possibilita algo essencial: a comunicação entre adultos e os mais jovens.