Cena de “Peter Grimes”, também montado na Royal Opera House e na Bavarian State Opera este ano — Foto: Cleuton Mendonça/Divulgação
No palco do Teatro Amazonas, é impossível não fixar o olhar na enorme cabana de madeira de pescador e no bar erguido sobre palafitas, cenários centrais de “Peter Grimes”. Considerada uma das melhores óperas do século XX, a obra-prima de 1945 do inglês Benjamin Britten (1913-1976) é a principal atração do 24º Festival Amazonas de Ópera (FAO), com três récitas concorridas, a última delas amanhã. A edição marca o retorno ao formato totalmente presencial, após o evento não acontecer em 2020 e de uma experiência híbrida no ano passado.
Peter Grimes é um pescador de uma cidadezinha portuária inglesa acusado de causar a morte de seu aprendiz. O avesso da simpatia, fixado no lucro da pesca, cai em desgraça por conta do disse me disse de personagens quase sempre mesquinhos e hipócritas. A aldeia espelha o embrutecimento do protagonista e a tensão cresce em direção a um linchamento aparentemente inevitável.
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O estudo da violência tem atraído encenadores interessados em tratar da polarização política atual, das fake news e do tribunal da internet com sua visão enviesada da justiça e cancelamento sumário de indivíduos. Composto durante a Segunda Guerra Mundial por um barulhento pacifista, “Peter Grimes” teve produções destacadas este ano na britânica Royal Opera House e na alemã Bavarian State Opera.
— É a antena que temos e parece captar o que os artistas desejam falar em determinado momento. Mas há algo específico sobre se fazer “Grimes” em Manaus, para o público local, em uma produção latino-americana neste momento político nos nossos países — diz o diretor colombiano Pedro Salazar, de 47 anos, celebrado por sua “Florencia en el Amazonas”, ópera do mexicano Daniel Cátan (1949-2011), apresentada há quatro anos no FAO.
Em duas semanas a Colômbia vai às urnas para escolher um presidente em eleições marcadas por episódios de violência e a possibilidade de uma vitória inédita da esquerda, com um ex-guerrilheiro, e sua vice, negra, liderando as pesquisas.
— A violência é marca central de nossos dois países e se debruçar sobre ela é vital. Contamos aqui a história de Britten sem nos desviarmos dela, mas não me interessa fazer um museu operático e sim algo que dialogue com o entorno e o público local — diz Salazar.
Os cenários do também colombiano Julián Hoyos, que tomaram forma após pesquisa em comunidades indígenas nos dois lados da fronteira, aumentam a intimidade do público local com o que se vê no palco. No papel-título, o tenor Fernando Portari, aos 54 anos, imprime o tom exato de emoção e já deve incluir o personagem como destaque em uma carreira de êxitos. E a Orquestra Sinfônica da Amazônica, sob a batuta do maestro Luiz Fernando Malheiro, diretor artístico do FAO, brilha ao criar seus próprios sons do mar, de pássaros a apitos de embarcações, das ondas à tempestade, real e figurativa.
No coro de “Peter Grimes”, é possível identificar crianças da vila de pescadores que voltam ao palco no dia seguinte em “O Menino Maluquinho”. O FAO sempre conta com pelo menos uma atração voltada para o público infantil, na busca de se formar profissionais e de trazer as crianças ao Teatro Amazonas. A se levar em conta a reação entusiasmada neste sábado da meninada, a “maluquice” de Ziraldo coube bem no prédio concluído em 1896 para a elite manauara.
— O público do teatro hoje é o avesso do da época de ouro da borracha. Temos ingressos populares, programação acessível o ano todo e chegando à marca de 25 anos de continuidade do festival. Somos a prova cabal de que ópera não é uma atividade exclusiva para as elites do Sul e do Sudeste — diz Malheiro.
“O Menino Maluquinho”: Inspirada em Ziraldo, ópera mantém a tradição da programação infantojuvenil do evento — Foto: Cleuton Mendonça/Divulgação
A mais nova encenação da ópera de Ernani Aguiar, com libreto de Maria Gessy de Sales e direção de Matheus Sabbá, de 26 anos, tem elenco todo local, com muitos talentos do Coral Infantil e Infanto-juvenil do Liceu de Artes e Ofício Claudio Santoro, órgão público e gratuito estadual voltado para a formação das artes. Aguiar estará no FAO na semana que vem para as derradeiras apresentações de “O Menino Maluquinho”.
O compositor acaba de estrear outra ópera, “Aleijadinho”, sobre a trajetória do gênio mineiro (1738-1814), composta sobre libreto de André Cardoso. A primeira apresentação reuniu, no dia 29 de abril, quatro mil pessoas na plateia improvisada na praça em frente à Igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto, onde se encontram obras-primas do mestre barroco. A produção foi do Palácio das Artes, de Belo Horizonte, onde o espetáculo teve quatro récitas, a última delas nesta sexta-feira.
Parceria para 2023
A busca de um circuito nacional de óperas com ênfase em coproduções foi tratada no 3° Encontro de Economia Criativa e Teatros de Ópera na América Latina, realizado durante o festival. Além de números que atestam o impacto do FAO (a diretora-executiva Flavia Furtado informa que, em duas décadas, dez estabelecimentos e sete hotéis foram abertos em torno do Teatro, e pelo menos 600 empregos são gerados diretamente todos os anos), um dos resultados práticos da reunião foi o anúncio da produção conjunta, pelo Teatro Amazonas, o Theatro Municipal de São Paulo e o Palácio das Artes, da ópera “O contratador de diamantes”, de Francisco Mignone, que estreará no FAO no ano que vem e depois irá às capitais paulista e mineira. A edição deste ano já contou com uma parceria com o Theatro da Paz, de Belém (“Il Tabarro”, de Puccini) e a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (“O caixeiro da taverna”, de Martins Pena).
“Peter Grimes” será apresentada novamente na terça-feira e “O Menino Maluquinho” no sábado. O FAO, que é realizado pelo governo do Amazonas com apoio do Bradesco via Lei Rouanet a um custo de R$ 5 milhões, conta ainda com transmissão pela TV local. A programação segue até o dia 31 na capital e em quatro cidades do interior amazonense.
* Eduardo Graça viajou a convite do FAO