RIO — Em seu itinerário trágico e escandaloso, a vedete e faquiresa Suzy King viveu muitas vidas. Reinventando-se a todo momento, escreveu peças censuradas, dançou com cobras, jejuou seminua enterrada em urnas, compôs marchinhas e protagonizou manchetes nos anos 1950 e 1960. Mas há algo que a “deusa das serpentes” nunca deixou de ser, do seu nascimento no interior da Bahia à sua morte solitária e pobre em um trailer nos Estados Unidos: uma artista transgressora.
Pelo menos é assim que sua figura vem sendo recuperada nos últimos anos, em filmes, livros e documentários. A recém-publicada biografia “Suzy King — A pitonisa da modernidade” (Desacato) é a mais completa investigação sobre a misteriosa personagem até aqui, preenchendo lacunas da sua trajetória e celebrando sua natureza provocadora. Os autores Alberto Camarero e Alberto de Oliveira, conhecidos como Os Albertos, também dirigiram o documentário “A senhora que morreu no trailer”, que acompanha suas buscas por rastros de Suzy pelo mundo. Ainda sem data de estreia oficial, o filme será exibido nesta quarta, 10, às 21h, na abertura virtual da sexta edição do festival Yes, Nós Temos Burlesco (YNTB), que homenageia a artista. A transmissão será gratuita, pelo canal do festival no YouTube.
Ainda como King, ela abraçou o faquirismo e brilhou em uma arte pouco reconhecida: a de criar factoides. Foi uma espécie de subcelebridade trash antes de o termo existir. Quase uma Kim Kardashian. Algumas de suas principais aparições na imprensa envolvem a dramática fuga de uma sucuri do décimo andar da residência da faquiresa, no edifício Tunísia, em Copacabana; o pânico dos vizinhos com as suas cobras Catarina, Cleópatra e Perón; e uma disputa pública com uma fábrica cujas salsichas teriam envenenado sua pet favorita. Após peitar a empresa, King se disse ameaçada por capangas: “Enquanto espero a morte vou me alimentando de bolachas e chá”, anunciou aos jornais.
Mas nenhuma ação de marketing causou mais rebuliço do que seu desfile seminua em um cavalo branco, em pleno Centro do Rio, para promover mais um de seus jejuns — aventura que lhe valeu outro apelido, Lady Godiva brasileira. Ela foi assediada pelos transeuntes, perdeu o figurino do show, caiu do cavalo e teve que fugir do local amargando prejuízos financeiros. “Mãos bobas funcionaram”, noticiou a imprensa da época.
Os livros e o documentário dos Albertos, assim como o filme de Ignez, recuperam a hoje esquecida moda do faquirismo, que marcou a cultura popular nos anos 1950. Os astros da fome eletrizavam o público jejuando por longos períodos dentro de uma urna de cristal, sobre uma cama de pregos. As performances aconteciam em salas comerciais lotadas. King ficou conhecida por se apresentar na Galeria Ritz, em Copacabana, que ainda existe. Segundo os autores, nenhum comerciante atual de lá sabe algo sobre a idade de ouro do faquirismo. O espaço exato onde King jejuava é agora ocupado por um salão de beleza.
Com mais esse mergulho no universo da vedete, os Albertos se equilibram numa tarefa ambígua: celebram os mistérios da personagem ao mesmo tempo em que os desvendam. No novo livro, a dupla conseguiu iluminar os últimos dias de King em um parque de trailers na Califórnia, onde foi viver após se casar com um americano. Eles também encontraram o filho desaparecido dela, com o qual perdera contato dos anos 1960 até a morte. Ele vivia em situação de rua quando os biógrafos o localizaram.
— Agora que King já morreu e que não corre mais riscos de, por exemplo, ser processada por falsa identidade, isso tudo vir à tona é como jogá-la na cara de todo mundo, principalmente dessa sociedade que a desprezava na época — diz Oliveira. — Ninguém a segurou, ela sambou na cara de todos. O seu legado é justamente a reinvenção constante de personalidade, as mentiras, as formas de ludibriar a sociedade.
King lutou contra a polícia, a censura e a hipocrisia. Foi perseguida e apanhou, não raro fisicamente. Mas nunca desistiu de ser senhora de seu destino. Não surpreende, portanto, que seja ícone de uma nova geração de representantes do burlesco nacional. Tanto que ela é a figura central do cartaz desta edição do YNTB. Para a artista burlesca Miss G., fundadora do festival, King e outras divas do passado “abriram um caminho”.
— O YNTB tem essa tradição de recuperar as histórias das nossas “avós” — diz ela. — Por motivos políticos, essas artistas foram apagadas. O que muita gente chama de transgressão, a gente chama de burla. Essa forma de causar rebuliço e mudar os padrões é uma estratégia burlesca. E Suzy King tinha um jeito só dela de burlar.