Numa determinada Vara de Sucessão da Capital hibernava um inventário de um falecido microempresário descendente de italiano, que passou a vida juntando dinheiro, bens móveis e imóveis para os cinco filhos que teve com a sua esposa, Dona Rachel. A cada um, o casal, em vida, fez questão de lhes oferecer os melhores cursos e a melhor formação profissional.
Durante sua existência, tudo que conseguia trabalhando no comércio, fazia questão de dizer que era para o futuro dos filhos. Dizia querer deixar para eles o que os seus pais não puderam lhe dar em vida. Para isso, sacrificavam-se diariamente ele e a esposa, Dona Rachel.
Não lhes havia lazer: passeios, festas, diversão, almoço fora. Jantar com a esposa extra, nem pensar! Tudo economizava para os filhos. Até as compras básicas em feiras livres de final de semana necessárias à mantença do casal durante a semana eram feitas no fim de feira, para comprar tudo mais barato para economizar.
Os filhos cresceram e se formaram e se acomodaram em bons empregos; e se casaram e foram deixando os velhos para trás.
Um dia, quando menos esperavam, seu Cláudio Colelo e Dona Rachel, deram conta que se encontravam sozinhos dentro do casarão que construíram, porque os filhos já tinham pegado a estrada da independência, casando-se e construindo família própria.
Mesmo assim o velho, seu Cláudio Colelo, continuava trabalhando com sua esposa, Dona Rachel dia e noite, aumentando o patrimônio para deixar para os filhos. Essa era a sua grande obsessão! Até da saúde abdicou! Relaxamento total! Economizar era preciso!
Uma noite sombrosa, chuva que não acabava mais, relampiando pra cacete, o velho sentiu-se mau no meio da noite. Dona Rachel tentou levá-lo ao hospital no Gordine velho pertencente à família. Tentou ligar o motor e este não respondeu para socorrer o velho moribundo a um hospital do SUS porque ele não pagava plano de saúde particular para juntar dinheiro para os filhos. Dizia ser uma obrigação do governo tratar toda a população na doença: para isso pagava uma carga de imposto exorbitante!
Dona Rachel tentou chamar um vizinho para socorrer o marido já de madrugada. O vizinho atendeu-lhe o pedido. Tentou mais uma vez ligar o carro do casal que não pegou, e não conseguindo levou o senhor Cláudio Colelo no Candango dele mesmo ao hospital do Estado, já desacordado!
Chegando à emergência do hospital, os médicos que atenderam o senhor Cláudio Colelo, disseram que infelizmente não podiam fazer mais nada, pois o homem havia morrido minutos antes por falta de socorro rápido. Demorou muito para chegar à emergência – disse!
Desesperada, dona Rachel ligou para todos os filhos que estavam já casados morando em estados e países diferentes e já com famílias constituídas.
Um por um a quem ela ligou comunicando o fatídico acontecimento recebeu um sonoro não para vir ao enterro do velho, ou porque não podiam ou porque moravam distante e não tinham como viajar às pressas. Foi a primeira vez que Dona Rachel sentiu o gosto amargo da mudança no comportamento dos filhos para com os velhos pais!
Dona Raquel teve de se virar sozinha, contando tão somente com a misericórdia da família que o senhor Cláudio Colelo, em vida, desprezava, torcia o nariz!
Depois do enterro do velho e com a ausência dos filhos, teve de abrir o inventario do de cujus para partilhar os bens deixados pelo falecido: entre ela e os filhos ingratos que sequer vieram para o enterro do pai. Sequer ligaram mais para a mãe, agora viúva e só!
Quando tentou telefonar para os filhos que ia abrir o inventário do falecido para fazer a partilha dos bens e que precisava da autorização deles e de suas esposas ou esposos, recebeu um uníssono não e que se virasse sozinha. Recado curto e grosso passado. Angústia geral!
Começou aí seu segundo desgosto manifestado no comportamento dos filhos!
Dona Raquel reuniu todos os documentos dos bens moveis e imóveis que o falecido deixou como herança, contratou um defensor da família que o falecido desprezava, e deu entrada no inventário.
Distribuído o processo para uma das Varas de Sucessão o juiz despachou para emendar a petição inicial dentro do prazo legal, requerendo a juntada da documentação de todos os herdeiros e respectivas esposas ou esposos e com as procurações, sob pena de indeferimento sem resolução de mérito por faltar os documentos dos herdeiros para dar prosseguimento ao processo.
Começava daí a via crucis de Dona Raquel em busca dos filhos, genros e noras!
Nos primeiros contatos que teve com os filhos distantes sobre a grande necessidade do recolhimento dos documentos pessoais e das procurações para dar prosseguimento ao inventário teve a maior decepção de sua vida: nenhum filho estava interessado no inventário e que a “velha” se virasse sozinha.
E o pior: quanto mais o tempo ia passando mais os bens iam-se deteriorando e a senhora Rachel, já cansada e morrendo aos pouco de desgosto, ia assistindo a tudo que o marido e ela construíram com sangue, suor, lágrima e privações, serem corroídos pelo tempo!
O desespero e o desgosto chegaram ao ponto tal que ela ficou tão atarantada que chegou a procurar a vara de sucessão onde fora distribuído o processo e tirou cópia do inventário vinte e duas vezes!
Na vigésima terceira vez que esteve na vara de sucessão para tirar outra cópia do processo porque as outras xerox havia perdido de tão perturbada, o atendente, que já a conhecia ficou tão assustado que mandou chamar a chefe de secretaria para atendê-la porque nunca tinha visto nada igual naquela e em outras serventias judiciais!
Quando a chefe de secretaria chegou junto para conversar com Dona Rachel, lhe perguntou, com os olhos abuticados:
– Dona Rachel, pelo amo de Deus o que está acontecendo? A senhora já esteve aqui vinte e duas vezes para tirar cópia desse processo… Onde a senhora está deixando?
Foi nesse momento que Dona Rachel desabafou, com todo o corpo tremendo:
– Minha filha, você não leve a mau não! E desabando em planto, continuou:
– Desde que meu marido morreu que vivo dentro do inferno! Meus filhos não falam mais comigo! Por causa dessa maldita herança que meu marido deixou eles estão comento um ao outro, dizendo que não lhes interessa porra de herança do pai porque estão muito bem e eu que me virasse para resolver!
E continuou com o desabafo:
– Se eu soubesse que essa maldita herança fosse me dar tanto aperreio, dor de cabeça e meus filhos fossem ficar inimigos um dos outros eu teria “estoporado” tudinho junto com meu velho antes! Hoje me vejo só, meus filhos me abandonaram! E a herança que o pai deixou construída com tanto sacrifício o tempo está destruindo tudo, inclusive a mim! E desabou em planto novamente!
Foi quando a chefe de secretaria, atenciosa e paciente, deu-lhe alguns conselhos que a acalmaram e Dona Rachel se foi pela última vez do Cartório sem tirar outra cópia do processo.
De desgosto e solidão, morreu três meses depois da ida à Vara de Sucessão onde tramitava o processo, de enfarte fulminante e sozinha, no silêncio da noite, apenas acompanhada da família que o marido em vida detestava, e tudo ficou para trás como se dada tivesse existido! Virou cinzas para as estrelas!
Da herança que os dois em vida construíram com tanto sacrifício não levaram nada dentro do esquife!
Dessa vivência na prática do oficio, a chefe de secretaria aprendeu uma grande lição para a vida: Entre a herança e a sucessão, deixe a sucessão para seus filhos. Se houver herança, deixe tudo partilhado em vida, pois nunca se sabe quando se bate as botas! Ou pensando melhor: Estoure tudo em beneficio próprio auferindo do bom e do melhor e ajudando a quem precisa sem esperar recompensa do além!
Ironicamente, tudo o que o senhor Cláudio Colelo não desejava aconteceu após sua morte e da esposa: um membro da família, que ele tanto detestava em vida, foi quem deu dignidade ao patrimônio, sendo nomeado pelo juiz como curador para administrar o espólio dos de cujus enquanto não houvesse uma decisão judicial.
A vida é estranha!