RIO — Faltava pouco para a pré-estreia de “ Bacurau ”, segunda-feira (26), e Sonia Braga não saía do saguão do Cine Odeon, no Centro do Rio. Cumprimentava todo mundo com um selinho. Foi assim com o amigo Daniel Filho. E com o funcionário da limpeza, que lhe pediu uma selfie.
— Sou muito simples. Só estou vestida assim porque tenho respeito às cerimônias, mas gosto mesmo é da minha calça normal — diz a atriz, usando um vestido preto que contrasta com seus cabelos, agora branquíssimos. No peito, um colar com pingente em forma de Brasil.
Ao sentar-se no sofá do hall do cinema para esta entrevista, Sonia troca o scarpin de salto 15 pelo chinelo que saca de uma bolsa de pano. Pede desculpas pela voz rouca. Na véspera, havia estado na manifestação pró-Amazônia , na Praia de Ipanema. Aliás, diz que ficou surpresa com a “reação fraca” da plateia quando gritou “salvem a Amazônia!” ao microfone do Odeon, assim que o elenco subiu ao palco para apresentar o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles . No longa, vencedor do Prêmio do Júri em Cannes e em cartaz no Brasil desde quinta-feira (29), ela dá vida à médica Domingas, mulher sem papas na língua e importante figura da cidadezinha de Bacurau.
Aos 69 anos, Sonia falou por uma hora e meia sobre a carreira e o país que deixou há 30 anos para morar nos EUA — primeiro, em Los Angeles, em seguida, em Nova York, onde vive há duas décadas. Depois, esticou no tradicional bar Amarelinho, ao lado do cinema, onde fez questão de chamar os garçons pelo nome.
Como se sente às vésperas de fazer 70 anos, em junho?
Do mesmo jeito de quando fiz 50. Aprecio bastante, queria ter chegado aqui com outras condições de cultura, que às vezes me faltam. Acho que poderia ter formação acadêmica. Mas, depois de 50 anos fazendo o que eu faço, criei uma academia própria. Tenho vontade de conhecer muitos lugares do mundo, aí começou a me dar aquela ansiedade de “não vai dar tempo”. Então, tive uma ideia fabulosa: vou acreditar em reencarnação! Vou escolher cinco lugares ótimos para ir nesta vida e, quando reencarnar, vou aos outros.
E os cabelos brancos?
Quando fiz “Aquarius” ( 2016) , a gente já queria deixar branco. Tentamos, mas ficou meio rosa, aí a gente pintou porque não dava tempo de esperar. Agora, o da Domingas ficou vermelho, é o que acontece quando a gente tenta descolorir cabelo preto, a tinta agarra. Você não sabe o que é não ter que pintar o cabelo, é uma libertação, um símbolo de liberdade. Primeiro que faz mal, né? Eu sou vegana, tudo que faço é saudável, me protejo. Não estou dizendo que jamais volte ao cabelo negro, porque não suporto peruca... Mas, se você me vir de cabelo preto, é porque há uma razão muito especial. Acho que o cabelo branco combina mais comigo.
Há 30 anos fora do país, você encontrou novos rumos na carreira com “Aquarius” e “Bacurau”. Que impacto esses personagens, que lutam por justiça social, tiveram em você?
Nunca parei de falar das questões do Brasil, talvez de uma maneira errada até, por não ter uma formação acadêmica, política. Sabe quando essa consciência aconteceu na minha vida? Quando meu pai morreu, eu tinha 8 anos, e minha mãe, dona de casa, ficou com sete filhos e sem um tostão, em São Paulo. Nos mudamos para a periferia, ela virou costureira e alugou uma padaria. Eu, que até então, estudava em colégio de freira e tinha aula de piano, passei a carregar lenha para botar no forno da padaria, fui para colégio público e vi a vida como ela é. As freiras ofereceram que eu voltasse a estudar no colégio delas. Aí, no meio da aula de religião, eu perguntei: “Irmã, se todo mundo é igual por que não tem uma criança negra na escola?” Não tenho como olhar uma criança pobre e não pensar sobre o processo dela até chegar à rua e pedir esmola.
Antes de “Aquarius”, você estava há 20 anos sem fazer cinema brasileiro...
Estava nos EUA, com a intenção de estudar fotografia. A experiência em “Aquarius” foi incrível, ficamos morando a alguns metros da locação, conheci pessoas, trocamos WhatsApp. Sou do tempo do telegrama. Quando saí do Oscar, chegou um telegrama para mim ( em 1986, “O beijo da mulher aranha”, de Hector Babenco em que ela atua, concorreu a melhor filme, direção, roteiro adaptado e ator, categoria vencida por William Hurt ). Imagina hoje? Não ia dar para acompanhar as mensagens. Quando a gente foi pra Cannes ( onde a equipe do filme protestou contra o impeachment de Dilma Rousseff ), foi uma loucura! Voltei e tive que bloquear metade dos meus seguidores, porque falaram coisas horríveis para mim. Não sabia que esse tipo de insulto poderia sair de um brasileiro para outro. Não entendo essas agressões a mim. Sempre fui simples, quis o bem.
Qual é o lugar do Brasil na sua vida hoje?
Meu coração tem a noção de que língua é pátria. Ser atriz e não fazer mais filmes e novelas em português me faz falta. Fui para os Estados Unidos de férias ( em meados dos anos 1980 ), antes de fazer um filme que estava certo no Brasil. Como não faço dois trabalhos ao mesmo tempo, havia dito “não” a todos os outros que tinham me oferecido. Só que o filme furou, resolveram fazer com outros atores. Eu estava em Nova York desempregada. Como tinha grana na época, resolvi ficar e estudar inglês. Aí começamos a divulgação de “ O beijo da mulher aranha ”, veio o Oscar, fui integrar o júri de Cannes... Enfim, iam me convidando, eu, aceitando. Sempre com a ideia de “quando me chamarem para trabalhar no Brasil, eu vou”. Aí, o Paul Mazursky me chamou para o filme “Luar sobre parador”. Fiz “The Milagro Beanfield War”, do Robert Redford, e “The rookie”, do Clint Eastwood, Comecei a fazer TV lá também. Para o Brasil, não me chamaram. Mas eu estava aberta...
E de olho no Brasil?
Tenho essa consciência do mundo, do planeta Terra. Desde os anos 1960, quando vi uma foto da Nasa com o nosso planeta do tamanho de uma bolinha de gude... Era a época dos Beatles... Falo para essa geração que me olha torto quando não sei mexer no celular: “Ah, você não estava no lançamento do LP dos Beatles, não foi hippie... Fuma maconha agora...”.
Você ainda fuma maconha?
Não, parei. Ficava muito paranoica. Mas sou a favor.
Como foi ver a “Bacurau” com os moradores de Barra, povoado onde o foi filmado?
Incrível. Quando rodamos o filme, vi que lá não tinha nem posto de saúde. A porta da escola estava caindo, nós é que consertamos. Não dava para deixar aquele lugar sem alertar as autoridades, como fiz em um post no Facebook. A governadora ( Fátima Bezerra ) e o prefeito ( Alexandre Petronilo ) foram assistir com a gente, assumiram um compromisso. Precisamos deixar coisas boas pra trás. As pessoas viajam em suas férias para Fernando de Noronha e só deixam lixo!
De uns tempos para cá, os artistas vêm sendo criticados por usarem leis de incentivo. Como vê isso?
Lembra o Caetano no Festival da Canção ( em 1968 ) gritando: “É essa juventude que quer tomar o poder?” As pessoas pensam: “Ah, vocês são artistas, pessoas ricas que moram no exterior e vêm aqui dizer o que a gente tem que fazer.” Antes de ser atriz, sou trabalhadora. As pessoas não compreendem a arte como uma profissão. Acho que a maioria dos artistas também não diz a palavra “trabalhador”, sabe? Fui a Brasília ( em 1980 ) com Betty Faria, Nelson Pereira dos Santos e Luiz Carlos Barreto falar com Figueiredo ( João Figueiredo, presidente do Brasil entre 1979 e 1985) sobre a importância da Embrafilme e dos direitos autorais conexos. Depois, os dubladores fizeram greve por três anos por melhores condições de trabalho. Olha a resistência, a união que tínhamos! Quando vejo os ataques aos artistas, penso: “Será que é porque a gente não resistiu?”
No filme, a população de Bacurau é consciente, luta por seus direitos. Como seria seu Brasil ideal?
Um país digno para todos, o Brasil que está na Constituição, em que todos são iguais, têm três refeições por dia, moradia e agricultura sem agrotóxico. Como chegamos ao ponto de ver criança na rua e fechar o vidro de medo? O Brasil nunca foi ok, resolvido. Mas quando vejo direitos conquistados com luta sendo destruídos e um presidente defendendo tortura, não entendo. Entendo menos ainda as pessoas que votaram nele.
No Festival de Gramado, você dedicou sua personagem a Marielle Franco. Por quê?
Conheci Marielle num debate sobre violência na época da Intervenção Militar no Rio. Fiquei impressionada. Ela contava o que estava acontecendo e dizia: “O importante é que a gente continue vivo.” Quinze dias depois, vem a notícia de sua morte quando filmávamos “Bacurau”. Não que minha personagem seja parecida com ela, o coração é que é. É gente que quer fazer o bem para o outro, que se preocupa com sua comunidade. Marielle estava presente ali comigo, achei que era justo dedicar aquele tempo que passei no sertão a ela.
Eles me mandaram mensagens perguntando se eu e minha família estávamos bem. Sabiam que eu estava em São Paulo quando o dia virou noite. A imagem lá é: “O Brasil está pegando fogo, a Amazônia vai acabar depois de amanhã”. A reação do exterior não é porque estão preocupados com o Brasil, mas pelo impacto da Amazônia no clima do mundo, por saberem que vão morrer antes do que esperavam.
O que sentiu ao ver que tinha pouca gente na manifestação?
Podia estar mais cheio. Como poderia ter sido mais alta a resposta aqui no Odeon quando gritei “salvem a Amazônia”. Está sendo forte, para mim, estar no meu país. Eu vinha de Recife, cheguei ao Rio, e me jogaram no meio da rua, aí, pá, segurei aquela faixa escrito “Amazônia” e comecei a sentir um negócio difícil de descrever. O Caetano ( autor de "Tigresa", música dedicada a ela, que namorou o compositor nos anos 1970 ) estava ao meu lado, ele cantou. Não há o que te prepare para esse nível de emoção. Gente, estão destruindo a Amazônia!
Acha que a questão foi partidarizada, passou a ser encarada por alguns como bandeira de “esquerda”?
Não sei. A gente só pode pedir, falar, avisar... Não podemos exigir ou cobrar nada de ninguém. Em 1968, eu ia a passeatas com a minha primeira diretora de teatro, Heleny Guariba. Naquele momento, no Brasil, teve isso, um grupo de pessoas que desbundou. Uns saíram, outros ficaram na guerrilha. Heleny ficou, e é uma das desaparecidas políticas. Tenho que conviver com isso ( a voz embarga ). Quando você vê que ela deu a vida... porra! ( chora ).