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Escolhida como oradora da turma, Nadine Talleis recebeu ontem a sonhada carteirinha da Ordem, em meio a uma plateia emocionada
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Sobrevivente da maior tragédia natural da história, refugiada, pobre, cega, negra e, agora, advogada apta a trabalhar no Brasil. Aos 33 anos, a haitiana Nadine Taleis é um dos profissionais que receberam a carteira de registro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Distrito Federal, ontem. Ela deixou a terra natal, em 2010, por causa dos estragos e do desespero provocados pelo terremoto que matou mais de 250 mil pessoas.
Primeiro, Nadine buscou abrigo na República Dominicana. Sem ajuda, decidiu vir para o Brasil. Entrou pelo Acre e se estabeleceu em Brasília, em 2013, após ser adotada por uma família, que a ajudou a realizar o sonho e fez questão de participar da cerimônia na sede da entidade, na Asa Norte.
A haitiana foi escolhida como oradora da turma. “Chegar aqui foi uma trajetória muito difícil. Tive que ter uma dedicação total. Não por uma questão de querer ter um diploma, mas por querer aprender. Tive que me dedicar desde o início da faculdade, quando já comecei a estudar para a OAB. Tive que correr atrás para vencer hoje, mas tudo isso é só o início. A carteirinha é um sonho e hoje é o começo dele. Quero advogar, me desafiar, começar a carreira jurídica trabalhando em escritório e construindo a minha carreira. E depois vou me naturalizar para conquistar outro sonho, de ser juíza”, discursou Nadine ao microfone, para um auditório lotado e emocionado.
Órfã cedo
No terremoto de 2010, Nadine perdeu quase toda a família e a casa herdada dos pais, que morreram quando ela era criança. Político, seu pai foi assassinado por opositores. Deprimida, a mãe morreu menos de um ano depois. Um avô, morto em fevereiro, foi quem a criou. Nadine estava em Porto Príncipe, a capital e mais populosa cidade do país, o epicentro do tremor, onde morava com os parentes. “De repente, eu não tinha nem roupa mais”, lembrou a haitiana. Na República Dominicana, ela foi mal recebida pela população, que não simpatizava com haitianos. Os vizinhos de uma ilha caribenha mantém um histórico de confrontos. Nadine permaneceu três meses no país.
Para chegar ao Brasil, a haitiana voou República Dominicana para o Equador e, de lá, atravessou de ônibus a fronteira do Peru com o Brasil. À época, com uma economia estável, o país atraía imigrantes em busca de emprego. Quando chegou ao Brasil, Nadine foi levada para Brasileia (AC). Ela morou em um ginásio municipal, com 1,3 mil refugiados, que dormiam em colchões e dividiam dois banheiros. Nadine só conhecia um tio, presente na cerimônia da entrega da carteirinha da OAB. Sem falar português, ela esperava arrumar um emprego como massagista, ofício aprendido na República Dominicana.
Família brasiliense
A refugiada veio para a capital do país em 2013. “Abrigamos a Nadine no Dia das Mães, foi o meu presente”, conta Loide dos Santos, enfermeira e professora, 58 anos. Ela e o marido, o pedagogo Carlos Ferreira, 50, receberam Nadine em casa, no Guará. Eles têm uma filha, que mora no Acre. “Minha filha ligou me dizendo da situação dela (da Nadine) no Acre e pensei que estava falando de uma criança refugiada. Depois descobri que a Nadine já estava com 25 anos e era cega. Foi uma surpresa, porque nunca tinha convivido com alguém com deficiência visual, mas, quando a conheci, foi amor à primeira vista. E a todo tempo ela dizia que ia conseguir entrar na faculdade. E hoje (ontem), com ela formada e certificada pela OAB, estamos radiantes de tanta felicidade”, ressaltou Loide.
Nadine recebia dos pais brasileiros o dinheiro para comer, se vestir e pagar o aluguel de uma quitinete. Ela, no entanto, escondeu deles que havia se matriculado no curso de direito da Mauá, em Vicente Pires. Para pagar a faculdade, ela deixava de comer. Chegou a ficar dois dias sem comer nada. Recusava-se a receber mais ajuda da família brasileira. Mas, quando notaram o empenho da aluna, diretores da instituição decidiram dar a ela uma bolsa de estudos integral e um estágio. Só então a haitiana contou aos pais brasileiros sobre a situação vivida nos primeiros meses de faculdade.
Nadine, que concluiu a graduação em quatro anos, também contou com ajuda dos colegas e professores. Os estudantes faziam silêncio na sala para que Nadine pudesse ouvir os professores e registrar as aulas em um gravador. O aparelho era o único recurso que a estudante dispunha para aprofundar os assuntos em casa.
Aulas gravadas
A professora Estela Cabral conta que Nadine demonstrava uma aplicação e inteligência fora do comum, sempre fazendo muitas perguntas. “Ela era uma aluna assídua, que trabalhava o dia todo na faculdade e estudava à noite, mas continuava conversando por áudio comigo depois das aulas, até o anoitecer, sobre o conteúdo. A Nadine é super-respeitada pelos colegas, até porque eles não a enxergam como uma pessoa especial por conta da deficiência, mas sim por conta das capacidades que ela tem”, destacou a docente. “Ela é uma fonte de inspiração para mim, porque transformou minha vida por completo”, completou Estela.
Roberson Rodrigues, 51 anos, que dividiu a sala de aula com Nadine, pôde compartilhara alegria de receber a carteira da Ordem no mesmo dia. “Quando soube que ela passou na OAB, comentei com minha esposa que queria muito que a gente se formasse junto, por conhecer a história dela e querer ver o seu sonho sendo realizado. E deu tudo certo! Nos formamos, recebemos a carteirinha e eu acabei mais feliz por ela do que por mim”, comemorou Roberson.
Agora, Nadine pretende conseguir um emprego, prestar concurso para a Advogacia-Geral da União (AGU), adquirir a experiência e tornar-se magistrada. “Se uma empresa quiser me dar uma oportunidade para trabalhar, vou ficar muito feliz. Não é um favor, peço uma oportunidade para demonstrar a minha capacidade. Quero advogar, me desafiar, começar a carreira jurídica, trabalhando em escritório e construindo minha carreira. E depois vou me naturalizar para conquistar outro sonho, o de ser juíza.”
Trabalho
Nadine procura trabalho. Caso alguma empresa esteja interessada no currículo dela, pode contatá-la pelo telefone (61) 98149-8809.