Não é desejável uma relação hostil entre presidente da República e imprensa numa democracia. Bolsonaro formatou seu mandato para favorecer a proximidade com os jornalistas recebendo-os semanalmente — sem restrições — para cafés da manhã no palácio. Nem Lula nem FHC fizeram algo assim. Ao contrário, Lula não dava coletivas. Mas a estratégia foi desandando, com direito a provocações de parte a parte (Bolsonaro e imprensa) no cercadinho do Alvorada.
Após mais um episódio colocando em choque presidente e imprensa, Bolsonaro se referiu a parte dos jornalistas como “bundões”. Há algo errado aí, naturalmente, e não dá para topar essa descida ladeira abaixo no idioma em terreno que precisa de civilidade. E também é preciso verificar o contexto do qual provém o disparate presidencial.
Vamos à verificação de alguns elementos factuais desse contexto:
* Produção de reportagens insinuando que a eleição de Bolsonaro resultou de uma manipulação da votação por meio de um golpe no WhatsApp;
* Notícias associando o presidente da República com o assassinato de Marielle Franco a partir de falsos testemunhos;
* Reportagens no Brasil e no exterior insinuando em contrariedade com os fatos que o governo iniciado em 2019 bateu recordes de destruição da Amazônia seguindo diretrizes de crime ambiental;
* Especulações e pensatas na grande imprensa sobre um suposto golpe militar em articulação pelo presidente da República para o fechamento do regime, ignorando a reiteração pelo próprio presidente do seu compromisso incondicional com a democracia e a Constituição;
* Omissão deliberada da negociação democrática do governo com o Congresso em reformas cruciais como a da Previdência e produção de reportagens — inclusive em grandes veículos estrangeiros — sugerindo que o Brasil resiste ao domínio fascista graças a um “parlamentarismo branco”;
* Divulgação internacional de foto da primeira-dama fazendo tradução em libras com legenda transformando um dos gestos manuais dela em “continência militar”;
* Usar o vídeo de uma menina palmeirense acenando negativamente aos seus colegas de escola corintianos para dizer que ela estava se recusando a cumprimentar Bolsonaro;
* Tentar transformar o presidente numa pessoa insensível às vítimas da pandemia omitindo, inclusive, um ato oficial do governo em solidariedade aos mortos por covid-19;
* Plantar especulações e notas por mais de um ano e meio “noticiando” que Paulo Guedes, o principal ministro do governo, está deixando o cargo;
* Omitir o cumprimento de todas as metas no setor de infraestrutura para poder dizer que se trata de um governo inoperante;
* Transformar contingenciamento de verbas orçamentárias em corte fascista na educação (e silenciar quando essas mesmas verbas são liberadas);
* Espalhar fake news de que os Estados Unidos desistiram de indicar o Brasil para a OCDE para poder dizer que Bolsonaro é um capacho de Trump;
* Espalhar fake news de que o STF não retirou do governo federal o poder sobre as diretrizes de funcionamento da sociedade durante a pandemia;
* Escrever que manifestações de rua em apoio à agenda de reformas eram atos milicianos orquestrados pelo presidente contra a instituição do Congresso Nacional;
* Publicar que um remédio para tratamento da covid que divide a classe médica é curandeirismo, apenas porque o presidente encampou a recomendação dos médicos favoráveis a essa terapêutica;
* Silenciar sobre a violência de governadores e prefeitos contra cidadãos a pretexto de cumprir medidas sanitárias para fingir que o isolamento vertical com proteção dos vulneráveis é genocídio;
* Minimizar o Covidão e preservar vergonhosamente governadores e prefeitos que estão no centro da roubalheira porque eles são oposição ao governo federal;
* Silenciar sobre prisão arbitrária de jornalista em inquérito ilegal para fingir que isso é caçada a milícia fascista;
* Apoiar censura ditatorial do STF a plataformas de alcance internacional para se fingir de justiceiro contra o fascismo;
* Apoiar projeto de lei que finge combater fake news para instituir a mordaça nas redes sociais.
Vamos parar por aqui porque essa lista é interminável e você tem mais o que fazer. Vamos deixar só duas conclusões:
1. Nenhum presidente deve tratar a imprensa de forma rude;
2. Quem veiculou as fanfarras acima é bundão. No mínimo.