10 de maio de 2021 | 05h00
Raros são os filmes sobre artistas que se debruçam sobre o processo criativo. De modo geral, os cineastas preferem a vida à obra. Em Siron – Tempo Sobre Tela, em cartaz no cinema, André Guerreiro Lopes e Rodrigo Campos somam as duas vertentes para obter um retrato mais completo do artista goiano Siron Franco. Há, até mesmo, uma sequência em que Siron pinta sobre um vidro transparente, com a câmera captando os movimentos, o traçado e a obra em estado nascente. O procedimento evoca o incontornável O Mistério de Picasso (1956), de Henri-George Clouzot, documentário sobre o ato da pintura.
A dupla de cineastas contou com um personagem inquieto, uma usina de ideias que adora uma boa conversa. Além do mais, o próprio Siron flertou (e namorou) muito com o cinema, tendo em casa um bom acervo de filmagens domésticas. A tudo isso, os dois diretores somaram um trabalho paciente, que se estendeu ao longo de 20 anos e se ocupou das várias fases do trabalho do artista.
Vale, para o documentário, a imersão na obra e no pensamento do artista, como ele vê a si mesmo e seu trabalho. Por exemplo, Siron diz que se lembra mais do que pintou do que das coisas que viveu. O que é perfeitamente justo, considerando que cada trabalho é a reelaboração artística do vivido.
O que não afasta o artista da realidade; pelo contrário, torna mais profundo seu mergulho no real. Siron não se afasta da realidade que o cerca, com suas contradições e injustiças. Seus trabalhos com temática social são amplamente conhecidos, como os 499 totens indígenas erguidos no cerrado. Todos foram destruídos, com exceção de um, feito em concreto armado. Ou a obra sobre o acidente com o material radioativo Césio 137 acontecido em Goiânia, em 1987.
Siron foi às vezes vítima do espírito de repetição do mercado, quando lhe pediam apenas Madonas, a partir do sucesso de um primeiro quadro com esse tema. Ele pintava e vendia. Até para contradizer a profecia do pai, para quem ele morreria de fome se abraçasse a carreira artística. Mas, ao mesmo tempo, Siron não conseguia refrear o espírito crítico e passou a pintar as Madonas... com os dentes cariados. Ou com expressões faciais que evocam tudo, menos a santidade.
O artista é um inventor, um subversivo de si mesmo. Sobrevive apenas quando se contradiz e deixa para trás territórios conquistados. “Quando você domina uma técnica, é hora de afastar-se dela”, afirma Siron. Picasso dizia que, quando pintasse perfeitamente com a mão direita, precisaria mudar para a esquerda.
Essa inquietação é responsável pela obra diversificada, pelo estilo múltiplo, pelo sentido universal, mas ao mesmo tempo atento às suas raízes. Num depoimento, o poeta, mas também crítico de arte, Ferreira Gullar diz que Siron não tinha a aspiração comum a artistas brasileiros de sair do País assim que pudesse. “Ele permanece em Goiás”, espantava-se o poeta maranhense. Buscar a temática – e mesmo o estilo – naquilo que é próximo em nada significa provincianismo. Pelo contrário, ilustra o pensamento famoso de Tolstoi – para ser universal, o artista precisa falar de sua aldeia.