Pianista, cantor, compositor, radialista, ator, cineasta, escritor e pintor, foram tantas as facetas de João Lutfi que um nome só não bastou para dar conta da multiplicidade de suas atividades. Nos anos 1950, quando arriscava os primeiros passos na televisão, na extinta TV Tupi, esse paulista de Marília, descendente de libaneses, ganhou a alcunha com a qual entraria para a História: Sérgio Ricardo. Com ela, fez a passagem do rádio e das boates — símbolos de um Brasil que já ficava antigo nos anos 1960 — para a bossa nova e o cinema novo, movimentos que projetaram o país no exterior, numa escalada de modernidade que começou com a inauguração de Brasília (em abril de 1960).
Lembrado e esquecido
Da bossa e do cinema novo, Sérgio foi direto para as grandes disputas televisivas que revelavam canções. E foi nelas que, a contragosto, ganhou fama ao quebrar um violão diante de vaias. Por esse episódio, será sempre lembrado “e também esquecido”, como reclamou em entrevista ao GLOBO em 2017.
Que noite!Por que Sérgio Ricardo quebrou o violão no festival de 1967?
Nascido em 1932, o ainda João entrou aos 8 anos para o Conservatório de Marília, onde estudou piano e teoria musical, e, seis anos depois, mudou-se com a família para a capital. Em 1949, foi para Santos, onde trabalhou com rádio e como pianista de boate. Sua carreira de compositor começou oficialmente quando a cantora Maysa gravou a canção “Bouquet de Isabel”.
Apresentado ao pessoal da bossa nova pelo produtor Luís Carlos Miele, Sérgio participou, em 1958, de espetáculos com essa turma e, dois anos depois, gravou o LP “A bossa romântica de Sérgio Ricardo”.
— O Miele me pegou na televisão e me levou para a casa da Nara (Leão) porque o pessoal queria as minhas músicas. Ali, nasceu o meu trabalho na bossa, mas eu não fiquei muito tempo, não, porque a questão política me chamou, e eu passei para a música de protesto. E dali eu não saí mais — contou o compositor.
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Em 1962, ele ainda participou do show da bossa nova no Carnegie Hall, mas no ano seguinte já estaria fazendo a trilha sonora de um filme com fortes tons político: “Deus e o diabo na terra do Sol”, do diretor baiano Glauber Rocha, um clássico do cinema novo — movimento de filmes realistas com temática social com o qual Sérgio estreitou laços. Tendo estreado em 1961 como diretor no premiado curta-metragem “O menino de calça-branca”, em 1963 ele lançou “Esse mundo é meu”.
Com direção de fotografia do irmão, Dib Lutfi (que se tornaria um dos mais celebrados profissionais do cinema brasileiro), o filme estrelado por Antonio Pitanga, Ziraldo e Agildo Ribeiro deu a partida numa carreira de diretor que incluiria longas como “A noite do espantalho” (1973, cujo protagonista foi vivido pelo cantor Alceu Valença) e “Bandeira de retalhos” (2018, que Sérgio filmou no morro do Vidigal, no Rio, onde morava).
Nos últimos anos, ele vinha se dedicando à literatura, à pintura (chegou a vender algumas telas para complementar o orçamento) e ao espetáculo “Cinema na música”, em que cantava as suas composições feitas para filmes, acompanhado pelos filhos Marina e Adriana Lutfi (vozes) e João Gurgel (voz e violão). Ano passado, o show virou CD e DVD, com participações de Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Dori Caymmi e João Bosco.
Sérgio Ricardo morreu na manhã de ontem, aos 88 anos, no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, onde estava internado há quatro meses. De acordo com os filhos, em nota à imprensa, ele foi vítima de insuficiência cardíaca. “Sérgio se submeteu a algumas internações desde agosto do ano passado quando fraturou o fêmur. Chegou a pegar Covid no início de abril, mas se recuperou bem. No entanto, continuou internado por conta da insuficiência cardíaca”, explicaram Adriana, Marina e João.
Sem aglomeração
O velório será aberto e está marcado para começar às 14h de hoje, no Cemitério da Cacuia, na Ilha do Governador. Para evitar aglomeração, serão permitidas dez pessoas por vez na sala do velório. O sepultamento será feito às 16h30 no jazigo da família.
Durante todo o dia, artistas expressaram seu luto. “O dia está mais triste com a partida do meu amigo amado”, escreveu o cantor Jards Macalé. “Um multiartista, cantor, compositor de canções e trilhas sonoras fundamentais, cidadão exemplar e companheiro de lutas pelo direito autoral, deixa muita saudade. Viva Sérgio Ricardo!”, publicou o cantor Roberto Frejat.