15 de fevereiro de 2021 | 05h00
É curioso ouvir Sérgio Mendes dizer que errou o tempo. “Foi o pior timing do mundo”, fala ao Estadão, por telefone, de sua casa, em Los Angeles. Ele, o músico criador da sonoridade que bateu nos norte-americanos como o “groove brasileiro”, um derivado mais dançante do que a bossa nova, embaixadora inconteste no exterior até o lançamento de sua versão de Mais que Nada, de Jorge Ben, lançada em 1966, no álbum Herb Alpert Present’s Sergio Mendes & Brasil’ 66.
Tudo Sobre Sergio Mendes
Sérgio, vendedor à época de assustadores 1 milhão de discos nos Estados Unidos e dono de um hit com alto poder de contágio nas rádios enquanto os Beatles lançavam Revolver, falando de tempo errado. Não é verdade. O tempo estava certo. Era 2020, às vésperas de completar 80 anos, bem apropriado para colocar nas plataformas um álbum cheio de convidados especiais e composições novas a fim de confirmar o quanto seu som se tornou uma marca ainda reverenciada por um extenso arco de artistas da nova geração, de rappers a astros do reggaeton, que o querem por perto.
Jobim nunca se afastou de seu repertório, mas talvez o jornalista se refira ao tratamento das gravações. E ele acerta ao falar do “rosto para os sons alegremente sofisticados do Brasil.” Seu novo álbum, lançado 55 anos depois de Mas Que Nada, preserva o otimismo dos tempos em que levou um outro sol à Califórnia. De produção volumosa e com muitas participações, como gosta Mendes, ele não tem as sutilezas preservadas no passado de 1966, como Going Out Of My Head, ou reverências mais delicadas, como sua versão de O Pato. In The Key of Joy tem bases rítmicas poderosas e arranjos transbordantes para a série de convidados que chegam reforçando a ideia de Brasil turístico de Sergio Mendes com a qual o pianista construiu sua marca.
Sobre o fato de ter feito sua carreira à base de encontros, ele diz: “É isso mesmo, sempre foi assim.” E de ter extraído seu Brasil de uma ideia paradisíaca que, na prática, pode nem mais existir, fala o seguinte: “Eu cheguei aqui (aos Estados Unidos) em 1964. Já foram tantos governos (no Brasil) de lá para cá... Como não estou aí, fica difícil fazer um julgamento à distância.”
Mas os dias de pandemia parecem ter escancarado um pouco mais o que é esse Brasil distante de sua música. “Vejo de longe como o País está sendo administrado e dá uma grande tristeza, triste ver ainda esse negacionismo (com relação à pandemia). Passamos por isso aqui também. Eu acredito que não posso deixar isso afetar o meu trabalho, não podemos perder a esperança. Precisamos continuar dando prazer às pessoas.”
Assim, à parte de uma crítica que pode vê-lo com certo alienismo, Mendes revela seu engajamento como embaixador não oficial de um lugar que precisa resistir ainda que seja apenas na ideia. “A música se torna o único refúgio no qual você pode se expressar.”
Repertório. As bases de samba de seu álbum, e ele está sempre apoiado a elas, foram gravadas no Brasil para receberem a voz do engajado rapper norte-americano Common (em Sabor do Rio), do sambista Rogê e da mulher de Mendes, Gracinha Leporace (em Bora Lá), da jovem Sugar Joans (em Samba in Heaven), de Hermeto Pascoal e Gracinha (em This is It) e de seu talismã das restaurações will.i.am em Água de Beber, uma escolha talvez estratégica se lembrarmos da revisão estrondosa que o Black Eyed Peas, de will.i.am, fez com Sérgio em 2006 ao relançar Mas Que Nada no disco Timeless.
Água de Beber tem um potencial de pista incontestável e vem pronta para as adorações cool que permeiam a carreira de Mendes, mas não havia clima em fevereiro de 2020 para que os volumes fossem aumentados. “Quero fazer uma turnê com esse repertório no ano que vem”, ele diz, já vacinado com a primeira dose do imunizante contra a Covid-19. Seu tempo de isolamento foi aproveitado para assistir a muitos filmes das plataformas de TV e fazer em casa tudo mais o que a estrada não o permitiu que fizesse por anos.
Documentário. Ao mesmo tempo em que pode falar do álbum como novidade, Sergio anuncia um documentário com o mesmo nome do disco, feito pelo diretor John Scheinfeld, autor de filmes sobre as vidas de Harry Nilsson, John Lennon e John Coltrane. “Eu senti fortemente que este filme precisava ser um contraponto à toda escuridão vinda de Washington e à polarização política que domina a paisagem cultural hoje em dia”, disse o cineasta, antes da eleição de Joe Biden. Além de depoimentos de Quincy Jones, will.i.am, John Legend e Carlinhos Brown, há histórias de encontros com Frank Sinatra, Elvis Presley e Stevie Wonder. “Sergio traduziu o que estava acontecendo no Brasil para o resto do mundo”, diz will.i.am.
Sergio fala que seu contato com músicos jovens, como Sugar Joans ou a dupla colombiana Cali Y El Dandee, com quem faz La Noche Entera, vem da mesma curiosidade que o levou aos Estados Unidos nos anos 60. “Tudo tem a ver com essa minha vontade de conhecer gente nova. Recebo muitas coisas de outros países. Às vezes, esse encontro existe, às vezes não.” Uma de suas histórias mais saborosas, que recorda na entrevista, foi a que se passou logo depois de sua gravação da canção assinada por Lennon e McCartney, mas feita de fato por Paul, The Fool on The Hill, do LP de mesmo nome, lançado por Sergio em 1968. Os Beatles haviam lançado a música em Magical Mystery Tour um ano antes. Paul ouviu a versão de Sérgio e escreveu uma carta ao brasileiro, dizendo ser aquela a mais bela regravação de sua música. Ao menos, até ali. Imaginário ou real, o Brasil de Sergio Mendes segue indestrutível aos olhos de um mundo que, da tríade carnaval, futebol e samba, parece estar comprando apenas a música.