|
|
Irmã Dulce dedicou a vida para ajudar os necessitados e era considerada santa por muitos desde 1950
|
O anseio para ver a primeira santificação de uma brasileira chega ao fim hoje, com a canonização de Irmã Dulce na Praça São Pedro, no Vaticano. Apesar de ser considerada santa por muitos desde 1950, não se pode dizer que o processo foi demorado. Santa Dulce dos Pobres teve a terceira canonização mais rápida da história — atrás da santificação do Papa João Paulo II e de Madre Teresa de Calcutá — apenas 27 anos após sua morte, em 1992.
A canonização de Irmã Dulce, iniciada em janeiro de 2000, tem sua conclusão quando Papa Francisco declarar, na madrugada deste domingo (horário de Brasília), que a beata está entre os santos do céu e inscrever o nome de Dulce na lista oficial dos santos da Igreja Católica.
Os dois milagres necessários para que a canonização fosse atestada foram validados pelo Vaticano. Um, em 2010, e, outro, em 2019. O primeiro, salvou Claudia Cristina dos Santos, que sofreu uma forte hemorragia, durante 18 horas após dar à luz o segundo filho. Claudia já havia sido submetida a três cirurgias na Maternidade São José, na cidade de Itabaiana, em Sergipe. Somente uma oração que pediu a intercessão de Irmã Dulce cessou a hemorragia.
O segundo milagre reconhecido pelo Vaticano aconteceu justamente com um conterrâneo de Irmã Dulce. Nascido em Salvador, José Maurício Moreira teve o diagnóstico de glaucoma aos 22 anos. Apesar do tratamento, Maurício ficou cego, em 2000, e permaneceu por mais 14 anos. Em 2014, em Recife, o maestro sofreu uma conjuntivite grave e teve fortes dores. A solução foi colocar uma imagem de Irmã Dulce sobre os olhos e fazer uma oração pedindo a intercessão do “anjo bom da Bahia”. Maurício conseguiu dormir e, quando acordou, a surpresa foi maior: ele enxergava.
O milagre passa por três etapas de avaliação para ser validado pela Igreja. Primeiro, uma reunião com peritos médicos foi feita para obter o aval científico. Depois, um encontro de teólogos, e, finalmente, a aprovação pelo colégio cardinalício. O reconhecimento do fenômeno faz parte de duas das três etapas necessárias para a santificação de uma pessoa: a beatificação e a canonização. Para uma graça ser considerada um milagre, ela precisa ser instantânea, perfeita, duradoura e ter caráter preternatural, ou seja, não pode ser explicada pela ciência.
No entanto, antes do reconhecimento dos milagres, etapa final do processo de santificação, é preciso fazer uma investigação da vida pessoal do indicado. O professor Olyver Tavares, que lecionou aulas de filosofia no Seminário Arquidiocesano de Brasília, explica que essa verificação biográfica dos aspirantes à santidade é a etapa mais demorada do processo. “É como uma investigação da vida do candidato para ver se há algo que desaprova a vida de santidade vivida por essa pessoa”, diz.
ExigênciasDe acordo com Olyver, a reforma do Código de Direito Canônico, promulgada pelo papa João Paulo II, em 1983, diminuiu algumas exigências para o processo de santificação da Igreja Católica. “Antes do pontificado de João Paulo II, apenas o papa poderia dar início a esse processo de canonização. Depois de João Paulo, a Igreja passou a autorizar que bispos ou até um conjunto de leigos pudessem dar início a esse processo, mas eles precisam informar à congregação que existe ali uma pessoa venerável que tem potencialidade para se tornar um santo”, conta.
Todo esse processo é julgado pela Congregação para as Causas dos Santos, que existe desde 1588. Constatada a vida de santidade, é requerido que se tenha um primeiro milagre para que este aspirante a santo ganhe o título de beato. Por fim, um segundo milagre tem que ser comprovado em nome daquele santo para que a santificação seja concluída.
Para o professor, a canonização de Irmã Dulce rompe com padrões europeus de santidade. “Irmã Dulce é analogamente um fenômeno parecido com Nossa Senhora Aparecida. É a santa brasileira com a cara do nosso povo. É algo histórico, que rompe com essa barreira do eurocentrismo. Esse é um santo que viveu aqui, que se santificou aqui. Creio que é o fortalecimento da fé católica no Brasil e na América Latina”, ressalta.
Caravana de políticosJosé Sarney é um dos políticos que foram até o Vaticano acompanhar de perto a canonização da Irmã Dulce. Além dele, também estarão presentes o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP); o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli; o procurador-geral da República, Augusto Aras; o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta; entre outros. Os nomes fazem parte da comitiva que representa o governo brasileiro na cerimônia. O grupo estará sob o comando do vice-presidente Hamilton Mourão, que é o ministro-chefe da delegação brasileira. O presidente Jair Bolsonaro cancelou a ida à missa pela canonização de Irmã Dulce, em Salvador, “em decorrência de ajustes na agenda”.Conheça a trajetória da freira brasileira» Nasce em 26 de maio de 1914, em Salvador, Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, filha do dentista Augusto Lopes e da dona de casa Dulce Maria de Souza;
» Aos 13 anos, passa a ajudar na acolhida de moradores de rua e doentes na casa da família, que fica conhecida como Portaria de São Francisco;
» Ainda os 13 anos, é recusada por um convento por ser muito jovem. Só aos 18 anos, ingressa na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, em São Cristóvão (SE);
» Em 1934, faz votos de fé e torna-se freira. É quando recebe o nome de Irmã Dulce, nome que adota em homenagem à mãe;
» Em 1936, com 22 anos, funda a União Operária São Francisco. Mantida por cinemas construídos graças a doações, foi a primeira organização operária católica da Bahia;
» Em 1937, invade cinco casas abandonadas na Ilha dos Ratos para montar um abrigo para doentes. Acaba expulsa e passa a peregrinar com os enfermos por diversos lugares;
» Em maio de 1939, inaugura o Colégio Santo Antônio, voltado para a educação dos operários de Salvador e seus filhos;
» Em 1949, consegue autorização para transformar um galinheiro ao lado de um convento em abrigo para 70 doentes. O local se transformaria no Hospital Santo Antônio;
» Em 1988, Irmã Dulce é indicada pelo presidente José Sarney, com apoio da Rainha Sílvia, da Suécia, para o Prêmio Nobel da Paz, mas não leva o prêmio;
» Em 13 de março de 1992, aos 77 anos, morre no Convento Santo Antônio, na Bahia;
» Em junho de 2010, seu corpo é exumado e representantes do Vaticano ficam impressionados com a mumificação natural;
» Em 2011, é beatificada pelo enviado especial do Papa Bento XVI, Dom Geraldo Majella Agnelo, em Salvador;
» Em 1º de julho de 2019, o papa Francisco anuncia a canonização para 13 de outubro. Irmã Dulce ganha o nome de Santa Dulce dos Pobres;
Conheça mais:» Para assistirFilme – Irmã DulceO filme brasileiro, lançado em 2014, foi dirigido por Vicente Amorim e filmado em Salvador, lar da religiosa e local onde fundou as obras assistenciais. A personagem complexa e única é interpretada por Bianca Comparato e Regina Braga, que vivem a protagonista jovem e a partir dos 45 anos, respectivamente. O longa tem 1h47min de duração.
» Para lerLivro – Irmã Dulce: a santa dos pobresA primeira biografia jornalística de Irmã Dulce é resultado de um trabalho de oito anos de investigação em arquivos do Brasil, dos EUA e do Vaticano e de uma centena de entrevistas. O autor é o jornalista Graciliano Rocha.
O livro, que vai além da religião, tem 296 páginas e promete ser uma obra repleta de informações inéditas sobre a primeira santa nascida no Brasil.