13 de setembro de 2021 | 05h00
Foi assistindo às participações esporádicas da atriz Ruth de Souza em programas de TV ao longo dos anos que o jovem jornalista e escritor paulistano Ygor Kassab se viu interessado pela figura dessa atriz que, aos mais de 90 anos de idade, ainda despertava um efeito magnético no público.
“Meu encantamento veio do fato de ela sempre ter uma força humana e artística diante de uma realidade social tão conflitante”, conta Kassab que, desde 2014, vinha se aprofundando na vida e na trajetória da atriz morta em 2019, aos 98 anos. Ele lança agora Ruth de Souza – A Menina dos Vaga-Lumes: 100 Anos de História, a primeira biografia póstuma da artista e o primeiro livro a traçar um panorama da influência da atriz no cenário cultural brasileiro, um tipo de análise que o próprio jornalista sentia falta.
“Falta uma bibliografia robusta acerca da história da dona Ruth”, observa. “E essa falta tem vários fatores envolvidos. Primeiro, o racismo. A carreira dela sofreu impactos enormes devido à discriminação. Os papéis dados para dona Ruth, em sua maioria, eram pequenos e com poucas falas. Eram personagens servis ou marginalizados, como empregadas domésticas, lavradoras, damas de companhia e escravas. Esse estereótipo fez com que ela tivesse um ‘reconhecimento público’ menos badalado. E, claro, há a questão da falta de incentivo à educação e à cultura. O resgate cultural nunca foi algo muito lembrado nas políticas governamentais, haja visto o desprestígio de prédios históricos e teatros, além do descaso com a aposentadoria dos artistas.”
Lançado pela Giostri Edições, Ruth de Souza – A Menina dos Vaga-Lumes busca mesclar as passagens da vida da atriz com depoimentos de colegas e avaliações críticas de nomes como Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, jornalistas responsáveis por buscar o resgate e a valorização do trabalho teatral e cinematográfico da atriz.
Ao longo de cinco anos, Kassab conseguiu não apenas um levantamento farto de material, mas também depoimentos de figuras como Ignácio de Loyola Brandão, Amir Haddad, Léa Garcia, Zezé Motta, Haroldo Costa, Renata Sorrah, Karin Rodrigues, além de Nicette Bruno e da própria Ruth de Souza, que deu sua bênção para este projeto.
“O processo de pesquisa foi árduo, porque fiz muitas consultas e transcrições, e foi necessária uma minúcia muito grande para selecionar e encaixar no texto esses recortes. Mas é como bordar. É preciso ter muita desenvoltura e paciência para costurar as letras para o conjunto da obra ficar harmonioso”, comenta o autor.
“Foram cinco anos até a publicação do livro. Os primeiros dois anos foram apenas de pesquisas e os outros uma mescla entre escrever e me manter pesquisando. Eu queria fazer um trabalho diferente, que pudesse trazer um panorama crítico sobre ela que ninguém conhecesse. Então, busquei trazer à luz documentos históricos que atestam e enaltecem o grande valor que ela ainda possui nas artes cênicas do Brasil, valor esse que ela não teve em vida, apesar das homenagens.”
A saída pacífica de cena da artista, aos 98 anos, entretanto, deixou uma dívida social engasgada. Dívida essa que o autor busca sempre manter viva para que não se repita. “Faltou a ela receber um papel maior, que estivesse à altura de seu talento”, ele diz. O jornalista, contudo, enxerga na sociedade uma possibilidade de, hoje, valorizar com mais propriedade as figuras negras atuantes na cultura. Esse é, na visão de Kassab, também o legado deixado por Ruth de Souza.
“É a resistência. Há uma frase que ela costumava dizer e eu acredito que traduz muito bem toda essa situação: ‘Podem dizer que você não pode fazer algo, mas, se você quiser, irá fazer’. E, no Brasil, para fazer arte é preciso ter essa resistência de querer fazer”, comenta.
Autor de dois livros de poesia, lançados em 2017 e 2019, Ygor Kassab encerra a biografia de Ruth de Souza com um poema inédito dedicado à atriz que lhe acendeu o desejo de abrir os caminhos para a pesquisa e o resgate histórico de figuras marginalizadas na história cultural brasileira. Em sua lista, consta ainda o desejo de biografar nomes como Haroldo Barbosa e Léa Garcia, além de duas figuras do período da monarquia brasileira: as imperatrizes Leopoldina e Teresa Cristina.
1. Em 1945, é a primeira atriz negra a pisar no palco do Theatro Municipal do Rio para encenar O Imperador Jone, de Eugene O’Neill.
2. Em 1949, ao participar do Festival Shakespeare, se torna a primeira atriz negra a interpretar Desdêmona, em Otelo.
3. Em 1950, é contratada pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz e participa de Ângela (1951), Terra é Sempre Terra (1952) e do clássico Sinhá Moça (1953).
4. Em 1954, por seu desempenho em Sinhá Moça, torna-se a primeira atriz brasileira a ser indicada ao Leão de Ouro, no Festival de Veneza, perdendo por dois pontos.
5. Com a indicação ao Leão de Ouro, torna-se a primeira artista negra a estampar a capa da Manchete, em 1954.
6. Em 1951, compôs o elenco fixo na TV Tupi, sendo voz importante para que fosse levado ao ar o primeiro teleteatro estrelado apenas por atores negros na TV nacional.
7. Em 1961, assume o papel de Carolina Maria de Jesus na encenação de Quarto de Despejo. Foi o papel preferido da atriz, que considerava essa sua melhor interpretação.
8. Em 1969, deu vida à primeira protagonista negra de uma novela da TV Globo, A Cabana do Pai Tomás, de Hedy Maia inspirada em livro de Harriet Beecher Stowe.
9. Em 1988, recebe das mãos do presidente José Sarney a Comenda do Grau de Oficial da Ordem do Rio Branco, uma das mais altas distinções governamentais.
10. Em fevereiro de 2019, cinco meses antes de morrer, foi homenageada pela escola de samba Acadêmicos de Santa Cruz, do Rio de Janeiro.