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Michele Venâncio carrega com saudade as fotos do pai, morto aos 53 anos em decorrência da covid: "Era supersaudável, com aparência tão jovem"
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Boa parte dos moradores do Distrito Federal flexibiliza o isolamento social com atividades não essenciais, como saídas desnecessárias, encontros com amigos e até festas durante a pandemia do novo coronavírus. Mas especialistas ressaltam que a doença não atinge somente idosos. No total, 64.575 pessoas com menos de 60 anos contraíram o vírus na capital. Dessas, 227 não sobreviveram. Mais de 200 vidas que se foram e deixaram histórias, famílias, amigos e sonhos. “A doença não escolhe e não há como prever quais contaminados vão ter um caso evoluindo para algo grave. Então, ninguém pode se descuidar”, alerta Valéria Paes, infectologista do Hospital Universitário de Brasília (HUB).
Os boletins epidemiológicos da Secretaria de Saúde mostram que duas crianças, cinco jovens de até 29 anos e 220 adultos de até 59 anos morreram em decorrência da covid-19 no DF. Além disso, a média de idade do total de casos confirmados é de 38 anos. “Qualquer pessoa pode contrair o vírus, tanto que temos observado vários profissionais da saúde jovens falecendo. Também temos de lembrar que há uma parcela considerável de pessoas com menos de 60 anos que têm comorbidades, como obesidade, câncer, doenças respiratórias e outras”, explica a infectologista. Valéria ressalta que a probabilidade de internação em casos de infecção em pessoas com doenças preexistentes é maior, o que deixa essas pessoas vulneráveis.
No Distrito Federal, o percentual da população com asma e câncer — 6% e 2,7%, respectivamente —, por exemplo, é maior do que média nacional, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), de 2013, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A capital tem, ainda, 5,8% de moradores com diabetes e 3,5% com doenças cardíacas. “E, mesmo que o jovem seja contaminado e a doença não se torne grave, ele pode participar da cadeia de transmissão e levar o vírus para alguém, que pode acabar tendo complicações. Por isso, não podemos nos arriscar ou confiar em medicações que não foram confirmadas como benéficas. O melhor para si e para o próximo é se prevenir”, reforça Valéria.
Valor da vida
Quem infectou-se com o novo coronavírus sabe que a condição é arriscada. O morador de Águas Claras Izaildo Feltrini tem 38 anos e foi internado em uma unidade de terapia intensiva (UTI) por complicações da doença. “Não sei ao certo se peguei o vírus no trabalho ou em algum supermercado, porque eu sempre cumpri as orientações certinho, mas sei que comecei a ter sintomas em 11 de junho. Quando fui ao hospital, descobri que tinha a covid-19 e 25% do meu pulmão estava comprometido. Então, mandaram-me para UTI”, conta o servidor público. Izaildo ficou 12 dias internado, com febre, falta de ar e medo.
“Foram dias dolorosos, o pulmão chegou a ficar quase 70% comprometido e, por pouco, não precisei ser entubado. Passava na minha cabeça que eu era jovem, saudável, só tinha uma asma, que estava controlada. Mas, graças a Deus, a equipe médica foi muito competente, conseguiu controlar o quadro na terceira medicação que tentaram e eu tive ajuda da fisioterapia para me recuperar”, revela.
Depois do susto, Izaildo virou exemplo para amigos, que passaram a redobrar os cuidados. “Vejo gente confraternizando, bebendo sem máscara, fazendo festa, mas só peço que essas pessoas tomem cuidado, porque, quem entra em uma UTI, não sabe se sai. Eu dou graças a Deus que consegui me livrar dessa doença e tive a oportunidade de viver mais, mas vi gente jovem morrendo, porque é um vírus que não sabemos como reagirá no corpo. Os cuidados que pedem, como usar máscara e se isolar, são poucos perto do valor da vida”, ressalta.
Além de jovens, pessoas que tiveram uma vida saudável podem não resistir ao novo coronavírus. A moradora de Planaltina Michele Venâncio, 35, perdeu o pai, de 53, para a covid-19. “Ele não tinha nenhuma comorbidade. Diabetes, hipertensão, nada. Era supersaudável, com aparência tão jovem, que as pessoas achavam que era meu namorado. Então, não dá para falar que é uma doença fraca ou que só vai ser ruim para quem é do grupo de risco, porque não era o caso dele”, diz a gerente.
Luto
O pai de Michel foi ao hospital quando teve um quadro de dengue, e a família acredita que ele contraiu o vírus na unidade de saúde. “Ele foi internado no Hospital Regional de Planaltina, mas não tinha leito. Entramos na Justiça e lutamos, mas não teve jeito, então, transferimos para um hospital particular de Taguatinga. Mas, infelizmente, o pulmão dele já estava muito comprometido”, lembra Michele.
Além da perda repentina, a família encarou o luto com distanciamento. “O sepultamento é a pior coisa do mundo. Eles colocam o caixão na capela e você tem de olhar do lado de fora. O corpo é enrolado em saco plástico. Você enterra um ente querido como se fosse um saco de lixo. É muito sofrimento”, desabafa a gerente. Michele também conta que a mãe foi infectada dias depois do pai e que os filhos tiveram que se manter fortes para cuidar dela. “Só depois que isso tudo passar, a gente vai poder sentir, mesmo”, lamenta.
Três perguntas para
David Urbaez, infectologista do Laboratório Exame
Muita gente hoje quebra o isolamento social por causa da sensação de que está protegido só por usar máscara. Mas essas pessoas também estão em risco?
O pessoal entendeu a máscara como salvo-conduto, algo que faz ficar completamente fora de risco. Mas a máscara que estamos usando serve para diminuir a quantidade de partículas que expelimos, para proteger o outro, e, enquanto isso, elas se esquecem dos olhos. A conjuntiva é receptiva ao vírus e pode ser um canal de acesso. Outro ponto é que costumamos falar que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, então, a repetida exposição da pessoa que sai de casa sem necessidade vai somando cargas virais maiores, o que pode se traduzir em um quadro grave de infecção, levando à morte.
Também há um senso comum de que quem é jovem e não tem doenças está 100% seguro. Esse é mais um mito da covid-19?
A probabilidade de óbito em casos acima dos 60 é aumentada. Sabemos também que a comorbidade é um fator de risco e, por mais jovem que seja, a pessoa pode ter diabetes, pressão alta, obesidade. Tudo isso pode desenvolver quadros graves e levar a óbito. Mas a situação é bem mais complexa do que muitos pensam. Isso porque não tem como apertar um botão e descobrir como é nossa proteção genética, como o vírus vai agir no nosso corpo. A presunção de que o coronavírus não vai afetar em nada é perigosa, parte da falsa premissa de que a pessoa está imune, coisa que ninguém está. E, mesmo que a pessoa não sofra nada, ela pode transmitir para alguém da família, que pode acabar tendo complicações.
Observamos hoje muitos jovens confraternizando, fazendo até festas. Como explicar a eles o perigo dessas reuniões?
Esse é um momento de luto coletivo. Tivemos mais de 70 mil mortes no país. Não dava para esperar mais uns meses para fazer uma festa? Parece que se dissolveu a consciência da pandemia, que nós naturalizamos as mortes. Isso faz com que surja o espírito de querer se opor às únicas alternativas que temos para diminuir a circulação do vírus. Confraternização é um momento que promove proximidade; por isso, somos contrários. Não podemos negar que está acontecendo uma pandemia e que podemos nos expor ou levar esse vírus para pais, avós. Temos de lembrar que estamos na ascensão do vírus no Centro-Oeste. É paradoxal que as pessoas, antes, estavam atendendo ao isolamento e, agora, no momento de maior circulação do coronavírus, não estão. O que está acontecendo nos hospitais, o esforço dos enfermeiros, médicos e funcionários de UTI, é algo que nunca se viu na nossa história do DF.