Misturar amizade e família pode ser problema quando se trata de dinheiro: seja por causa de empréstimos nunca devolvidos, pela falta de dinheiro de uma das partes — o que acaba gerando dívidas ou pressões psicológicas —, seja por furtos praticados por pessoas próximas. Especialistas apontam que a falta de organização, de planejamento financeiro, o excesso de confiança depositada em terceiros e a mudança no padrão de consumo são os principais fatores geradores de conflitos nessas situações.
Por causa de uma dívida acumulada pelo ex-marido, Aline Castanheira, 26 anos, enfrenta dificuldades para pagar o aluguel. Desempregada desde agosto de 2018, a jovem se separou do pai de seu filho, de 4 anos, mas ainda divide a casa com o ex. “Decidi que só sairia da casa depois que estivesse trabalhando. A partir daí, ele (o ex-marido) começou a gastar o dinheiro de forma irresponsável, até que não conseguimos manter as contas em dia desde janeiro”, conta.
E esse não é o único problema que Aline enfrenta por causa de dinheiro. Segundo ela, devido ao débito, é ofendida constantemente. “Minha mãe sempre me ajudou como pôde, mas mudou comigo, no último mês, quando soube que eu estava endividada. Ela me humilha quase todos os dias, falando que toda essa situação chegou onde chegou por minha culpa, critica coisas que antes defendia, como meu direito de ter tatuagens ou de querer me separar”, desabafa ela, que, mesmo desempregada, nunca deixou de correr atrás de uma fonte de renda.
“O dinheiro meio que estragou meu relacionamento com a minha mãe. Eu consegui um trabalho com carga horária de oito horas diárias, preciso da ajuda dela para cuidar do meu filho durante esse período, mas ela não quer ajudar”, lamenta. Segundo Aline, as questões financeiras fizeram com que ela perdesse o apoio de sua família, que cobra que ela não trabalhe nos fins de semana. “Infelizmente, muitas pessoas precisam se submeter a cumprir horários em finais de semana, diz.
No caso de Lara Malta, 19, estudante de direito, a diferença financeira prejudicou o relacionamento com o namorado. “Eu sempre tive mais dinheiro do que ele (o ex), sempre tive uma boa condição financeira, meus pais conseguiram bancar tudo que eu queria. Quando comecei a namorar com ele, saí um pouco da minha bolha, mas ele começou a usar essa minha condição para me ofender”, relata.
“Ele criticava minha inteligência, sugerindo que eu era inferior a ele por ter dinheiro para bancar minha educação e curso de inglês. Ele ficava muito magoado porque eu tinha mais dinheiro do que ele, e tentava me atingir me diminuindo no processo, associando o fato de eu ter mais dinheiro com meu intelecto. Foi um dos motivos para o término da relação”, afirma.
A psicóloga Olga Tessari, graduada pela Universidade de São Paulo (USP), explica que a falta de dinheiro também pode ser um fator que contribui para a separação conjugal. Isso ocorre, por exemplo, quando há uma mudança no padrão financeiro da família. “Acontece, não necessariamente, porque o padrão mudou, mas porque o casal não dialoga a respeito, porque o parceiro fala que vai resolver e não resolve, porque alguns membros da família se recusam a diminuir o seu ritmo e o padrão de consumo, levando a muitas brigas e discussões sobre a falta de dinheiro”, justifica.
Empréstimos e furtos
No caso de um pedido de empréstimo feito por um amigo ou um familiar, Olga explica que as consequências podem ser péssimas se a resposta for um não. “Se a pessoa ‘afortunada’ nega o empréstimo para o ‘mais necessitado’, é possível que se torne malvista por quem solicitou o empréstimo. Se foi um amigo, pode ser que ele consiga criar um mal-estar entre pessoas do mesmo grupo, o que pode colaborar para que alguns deles se afastem do convívio e rompam a amizade”, analisa a especialista.
A psicóloga também destaca as situações em que uma pessoa com menos dinheiro se aproxima de um colega mais “endinheirado” apenas por interesse em frequentar a casa dele, conhecer seus amigos, “para se aproveitar da condição econômica do outro e exibir um status que, na realidade, não tem”. Esse é o caso vivenciado pela mineira Lívia Cabral, 20, tatuadora.
Após depositar confiança em um amigo que conheceu por meio de outros, Lívia foi enganada e chegou a ter seu dinheiro roubado por ele. “O conheci e já combinei de tatuá-lo. Como ele estava sem dinheiro na época, atrasou um mês para pagar pelo trabalho, mas tudo bem”, conta a jovem. Porém, segundo ela, um mês após o ocorrido, o “amigo” furtou R$ 100 de um conhecido em comum. “Quando soube disso, comecei a desconfiar e a observá-lo melhor. Optei por não confrontá-lo sobre isso, mas, depois de duas semanas, ele roubou mais R$ 200 de outro amigo”, relata.
E não foram apenas um ou dois amigos da tatuadora que foram furtados pelo “pilantra”, como Lívia o chama. “Além de mim, três amigos em comum foram alvos dos furtos dele. Quando íamos juntos para o bar, por exemplo, ele sempre pagava uma conta muito inferior à de todo mundo, e só dizia: ‘é isso mesmo’, quando via o valor”, reclama a jovem.
“De mim, ele só roubouR$ 50”, conta. “Ele extorquia o dinheiro sem os amigos perceberem, apesar de, às vezes, ficar muito na cara, já chegou até a roubar celulares de conhecidos. O problema é que ele tinha um jeito muito convincente, passava confiança, então, ninguém esperava por isso. Mas era pura manipulação”, diz. Lívia, apesar de não ter tomado providências maiores por questões de segurança, não mantém a amizade hoje em dia.
Vínculo
Jade Karolina Vieira, especialista em terapia de casais e familiares, compreende que, na sociedade atual, existe uma crença de que a felicidade está vinculada ao dinheiro. “Assim, quando muitos não alcançam esse padrão de felicidade, ficam reféns da frustração, do sofrimento psíquico e físico, além da manutenção de seu tempo e trabalho em prol desse objetivo”, acrescenta. Em sua visão, essa tentativa de alcançar uma boa condição financeira pode gerar transtornos psíquicos — como ansiedade e depressão — e interferir diretamente nas relações humanas.
A psicóloga sugere, como alternativas para que o dinheiro não exerça poder negativo no convívio familiar e com os amigos, que seja construída uma comunicação a base de respeito, “em que os integrantes da relação possam falar sobre expectativas, desejos, planos e dificuldades em relação ao dinheiro”.
Culpas
Alexandre Arci, educador financeiro, e Angélica Rodrigues, especialista em finanças comportamentais e coautora do livro Família, Afeto e Finanças, concordam que a falta de comunicação é um dos principais fatores responsáveis pelos conflitos financeiros entre familiares e amigos. “O dinheiro é um tema tabu, as pessoas não falam sobre isso, porque a gente aprende que é uma coisa constrangedora. Se o dinheiro que permeia as relações é discutido de uma maneira clara, dificilmente vai dar problema”, opina Angélica.
Para a especialista, o dinheiro não é o responsável por prejudicar as relações, mas, sim, as pessoas, que “se embolam ao misturá-lo com afetos e amizades”. Angélica exemplifica seu argumento com os casos de conflitos entre casais: “Exteriorizamos o nosso afeto com alguém por meio de presentes caros, ou pagando algo para a pessoa. Aprendemos a usar o dinheiro para aliviar alguma culpa, e é isso que vai deteriorando essas relações”.
No caso de empréstimos, a amigos e familiares, Alexandre sugere algumas formas de evitar conflitos. “É preciso formalizar qualquer transação bancária, definir o prazo para o retorno do dinheiro, se vai ter taxa de juros, se vai haver uma cobrança judicial caso o pagamento não aconteça”, ensina. “A melhor coisa a se fazer quando um amigo ou familiar precisa de dinheiro, é ajudá-lo a conseguir a quantia que necessita, entender o comportamento financeiro de quem está endividado, e não emprestar ou dar”, acrescenta.
Alexandre também estabelece três passos fundamentais para evitar brigas e prejuízos financeiros dentro de núcleos familiares: “Primeiro, cada um deve saber quanto gasta e com que finalidade. Segundo, é preciso discutir os objetivos e realizações daqueles gastos. O terceiro passo é fazer um mapa financeiro dentro do orçamento previsto, para alcançar o que é importante para cada um”. (TM)
* Estagiária sob supervisão de Rozane Oliveira