RIO — Quando teve problemas no coração (em 2005, passou um mês em coma por conta de um cateterismo malsucedido), Reginaldo Faria desejava que o tempo passasse devagar para usufruir de cada instante da vida. Agora, com a pandemia, quer que ele voe “para sair dessa agonia”. Aos 83 anos e isolado em casa com a mulher, Vania, sente falta da família.
Enquanto isso, ele faz esteira, ioga, nada e bebe duas taças de vinho por dia (“por recomendação médica. Ele só não falou o tamanho da taça”, brinca). Agora, também incluirá na rotina a novela “Vale tudo”, de 1989, que o Globoplay disponibiliza a partir de hoje.
Na pele do corrupto homem de negócios Marco Aurélio, o ator protagonizou uma das cenas mais emblemáticas da TV brasileira: a debochada banana dada pelo empresário, ao som de “Brasil, mostra a tua cara”, ao fugir do país num jatinho particular.
Na conversa a seguir, ele, que também está na reprise da novela “Totalmente demais”, traça um paralelo entre o Brasil daquele tempo e o de hoje.
Que lembrança viva tem dos bastidores de “Vale tudo”?
Dennis Carvalho imprimia um ritmo alucinante. Os atores corriam de cenário para cenário sem tempo para respirar. O resultado deu verdade aos personagens. Esse momento foi fundamental para mim, porque o lado físico trazia verdades que não havíamos encontrado nos ensaios.
Qual foi a maior contribuição da novela naquela época ?
Toda obra bem fundamentada deixa reflexão. Dar banana e abandonar o país era reflexo do momento crítico dos governos responsáveis dos anos 80: hiperinflação. Os espertos acreditavam que girando o dinheiro no “open market” teriam ganhos maiores que o lucro. A nossa cultura estava estribada nos que gostavam de levar vantagem em tudo. Marco Aurélio foi um deles.
A importância do texto de Gilberto Braga define bem o pior da raça humana e parece eternizá-la através do feio, do escroque, do corrupto e do corruptor. Me perguntaram se eu seria capaz de dar outra banana ao país. Minha resposta: Não. Por quê? Resposta de Marco Aurélio: eu não quero mais seguidores. Minha conta na Suíça está estabilizada. As bananas dadas não deveriam ser para o Brasil, mas para os que tornaram o país do jeito que ficou. No entanto, é lamentável dizer que, nesse período conturbado, cheio de corruptos, não ia ter banana suficiente.
De lá para cá, os brasileiros se politizaram muito. Que novos significados a novela ganha nesse momento?
Seria triste se o povo permanecesse na ignorância, vivendo como massa ignara e como instrumento de poderosos. Não vou entrar no mérito estritamente político, e não me dirijo a esse ou aquele, prefiro o mérito psicológico, que me faz lembrar o que li em “História da filosofia”: “O Estado é o que é, porque cidadãos são o que são. Consequentemente, não esperemos ter melhores Estados enquanto não tivermos melhores homens”.
“Vale tudo” também levantou a discussão sobre até que ponto vale ser honesto no Brasil. Hoje, com gente fazendo chacota até da pandemia, vivemos uma crise ética generalizada. Nada mudou?
Onde existe descrença, sintomas de revolta ou deboche se manifestam. Há anos o povo engole a mentira, o cinismo dos corruptos e dos que embolsam sua riqueza. Para os que debocham há de se considerar seus limites e também seus passos de protesto.
Uma vez você disse que era preciso fazer um personagem fascista para que entendessem o que significava o fascismo. Que tipo de personagem prestaria bom serviço hoje?
Li uma reportagem em que Gian Maria Volonté (ator italiano) disse: “Ao interpretar um fascista presto serviço à minha posição política por ser, eu mesmo, diametralmente oposto ao fascismo”. Estou de acordo. Anseio encontrar caminhos.
Como será seu personagem em “Um lugar ao sol”?
Um homem que trabalhou a vida inteira seguindo os princípios do seu velho pai no comando de uma rede de supermercados. Em função disso, tornou-se pai ausente, embora não se sinta assim. Acredita que seu amor vem em função de sua dedicação ao trabalho e à família. Ao ter problemas de saúde, sua filha mais velha sugere uma fisioterapeuta jovem e bonita. Resultado: ciumeira das irmãs e casamento para o velho.
Como enxerga o momento atual da cultura brasileira?
Quando leio (o significado da palavra cultura no dicionário), ergo a cabeça e volto aos tempos escolares em que o aprendizado nos enchia de orgulho. Quando paro de ler, olho para os lados, procuro, e, mesmo no caos, vejo que resta a esperança de encontrar o caminho.
E a situação do cinema brasileiro, que já vivia uma crise e parou na pandemia?
Vejo séries de diversas nações e pouca coisa produzida ou apoiada em nosso país. Antes lutávamos pela igualdade nas salas de exibições de filmes. Nos anos 1970, conquistamos metade do nosso mercado, concorrendo com os estrangeiros. Veio para cá um tal de Jack Valenti, da Motion Pictures, e travou nosso sonho. Collor aniquilou a Embrafilme, e a nossa classe se esfacelou. Hoje, os exibidores só aceitam os filmes que se enquadram aos perfis de seus interesses. Os que deviam nos apoiar estão em Brasília se engalfinhando por poder político.
Do que se arrepende na vida?
Quando romperam minha coronária num erro médico, entrei no hospital pesando 80 quilos. Quando saí, eram 64. Noites e noites acordei com a sensação de paralisia, coração interrompendo batimentos, respiração falhando. Meus membros paralisavam-se, e o grito vinha à garganta num pedido de socorro. Perdi massa muscular, a fala, tive sequelas.
Pensei em desistir. Mas meus filhos me estimularam, a vida estava presente através deles. Lutei por ela fazendo revascularização, fisioterapia e fonoaudiologia. Reaprendi a falar e a movimentar o corpo. Voltei às gravações sem saber se conseguiria falar os textos como antes. Estava absurdamente inseguro. Lutei mais com a ajuda de minha mulher e superei. Não tive tempo de me arrepender, só de agradecer.