Mulheres migrantes e refugiadas reconstroem a vida no Brasil
Guerras, conflitos sociais e a fome são alguns dos motivos apontados pelas mulheres que deixaram seus países para buscar, em solo brasileiro, um novo lar
Guerras, conflitos sociais e a fome são alguns dos motivos apontados pelas mulheres que deixaram seus países para buscar, em solo brasileiro, um novo lar
Mudar de vida. Conseguir um emprego. Fugir da miséria, da fome e da violência. Enfrentar a saudade, adaptar-se a uma nova cultura, aprender outro idioma. São muitas as razões e os desafios que fazem com que existam 710 mil pessoas com necessidade de proteção internacional acolhidas no Brasil. Os refugiados e migrantes representam a maior fatia dessa estatística que, agora, ganha protagonismo feminino. Os dados foram enviados ao Correio pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur).
Por trás das estatísticas, há pessoas que buscam melhores condições de vida ou mesmo fogem de confrontos políticos e sociais. São vidas que estão em reconstrução.
Durante um mês, o Correio acompanhou o cotidiano de mulheres refugiadas e migrantes em Brasília. Elas participaram do projeto Empoderando Refugiadas, que busca proporcionar autonomia financeira a essas mulheres, por meio da qualificação profissional, e ainda trabalhar a autoestima. A iniciativa é promovida também em Curitiba e em Boa Vista pela Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados (Acnur), pela ONU Mulheres e pelo Pacto Global da ONU no Brasil. Em Brasília, o programa é implementado pelo Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR).
A sala de aula é um verdadeiro intercâmbio de culturas. Mulheres de países como Venezuela, Haiti, Cuba, Costa do Marfim e Paquistão estudavam técnicas de atendimento e vendas, e curso técnico oferecido pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). Por diferentes caminhos, todas chegaram ao Brasil com o imperativo de recomeçar e encontrar oportunidades no país.
“Basicamente, (saí])pela ditadura que há no meu país. Está tudo mal. Não há comida, ou seja, nada. E tudo que tem é extremamente caro. Então, jamais vai poder ter algum empreendimento, nem trabalhar, nem nada. Ou você entra no governo e começa a trabalhar com eles, ou, sinceramente, você tem que ir embora”, desabafa a venezuelana Jennifer Navegas, 44 anos, sobre o motivo de ter deixado o seu país de origem, em 2016. Ela viveu na Argentina até o ano passado, quando foi atraída pela melhor estabilidade econômica das terras tupiniquins.
Inicialmente, as migrações e pedidos de refúgios no Brasil eram protagonizados por homens. De acordo com dados do relatório do OBMigra, em 2013, apenas 10,5% das solicitações de residência no Brasil eram de mulheres. Em 2022, esse percentual saltou para 40% — as venezuelanas superam essa média e chegam a 46%.
Uma série histórica de dados reunidos pelo observatório mostra que há um crescimento constante de mulheres migrantes e refugiadas no Brasil. Enquanto em 2011, apenas 20 mil mulheres realizavam deslocamento internacional, em 2022, o número chegou a 120 mil. Considerando o recorde, os últimos cinco anos foram os mais intensos, com um aumento de 200% — em 2017, eram menos de 40 mil mulheres em deslocamento internacional.
O crescimento da participação feminina nesse processo reflete também no mercado de trabalho. Em 2022, a OBMigra identificou que 15,6 mil migrantes e refugiadas ocupavam cargos de trabalho formal — esse foi o recorde de empregabilidade de mulheres no país até o momento. Os outros três anos em que esse valor foi significativo são 2019, com 6,9 mil; 2020, com 7,2 mil; e 2021, 7,4 mil.
A desigualdade entre homens e mulheres na esfera laboral também é uma realidade para migrantes e refugiadas.
Uma pesquisa divulgada em dezembro de 2022, pela ONU Mulheres, Acnur e UNFPA aponta que, enquanto apenas 2,4% dos homens venezuelanos que permanecem em Roraima possuem ensino superior completo, entre as mulheres este índice é de 10,2%. Mesmo assim, elas têm menos da metade das chances que os homens possuem de irem para outros estados do Brasil para trabalhar — no chamado processo de interiorização com Vaga de Emprego Sinalizada (VES), exclusiva para venezuelanos. O percentual de desemprego das mulheres venezuelanas é de 34%, enquanto o dos homens é de 28%.
Ainda segundo a pesquisa, 54% das mulheres venezuelanas permanecem nos abrigos de Roraima. A conclusão é que os homens saem para trabalhar em outros locais, enquanto as mulheres permanecem nas moradias para cuidar da família e da casa.
Para tentar mudar essa realidade, entidades da ONU desenvolveram o projeto Empoderando Refugiadas, que tem a intenção de inserir as mulheres migrantes e refugiadas no mercado de trabalho. A iniciativa aborda a autoestima feminina e oferece qualificação profissional técnica.
Criado em 2015, o projeto já era realizado em Boa Vista e Curitiba. Desde então, mais de 400 mulheres foram empregadas por meio da iniciativa.
“Claro que o nosso foco é a empregabilidade, mas o maior legado do projeto é o processo de autonomia dessa mulher, de ela entender que é capaz. Essa injeção de autoestima para mostrar que ela consegue, que ela que tem caminhos e que o Brasil é acolhedor”, explica a coordenadora do projeto, Yana Lima, que integra o Pacto Global da ONU no Brasil.
No ano passado, Brasília entrou na rota dos locais que oferecem cursos de qualificação profissional a migrantes e refugiadas. Na capital federal, a implementação da ideia é feita pelo Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados. Ao todo, 26 mulheres e refugiadas se formaram na primeira turma. Neste especial, o Correio conta a história de quatro delas.