O Nildinho, 86 anos, amizade de muitas décadas, me escreve uma carta contendo uma série de reflexões que muito me sensibilizaram, dado o acontecido não ter chegado ao meu conhecimento, apesar de estar ele morando numa capital próxima do Recife. Permitam-me transcrevê-la integralmente, corrigidos alguns lapsos de concordância gramatical. Ei-la:
“Nando amigo:
Há poucas semanas perdi minha companheira de décadas de excelente conjugalidade, vitimada por uma enfermidade incurável nos pulmões, causada pelo vício de fumar que ela nunca buscou combater. Uma companhia que sabia o que era amar nos bons e maus momentos, nos frios e calores das ocorrências cotidianas.
Infelizmente, na era contemporânea, muita gente imagina que amar é só enfiância, nunca percebendo que toda amorosidade mal entendida acarreta desesperanças e ilusões, agressões, abandonos, xingamentos e feminicídios.
A Rita me ensinou a entender a grandeza do que seja saber amar, ainda que sem lenço nem documentos, apenas com a vontade de ser beneficiado com uma existência conjugal saudavelmente compartilhada, onde um caminhar diário a dois iluminava mil e um horizontes de sonhos e ideários em perspectiva.
Saibam os jovens atuais adquirir uma amorosidade cotidiana sempre comprometida com uma vivência ética capaz de enfrentar os obstáculos emergentes mais complexos.
Quem sabe pensar bem, sem anseios exclusivamente xoxotais, ama com mais grandeza d’alma, se apetrechando com mais sensibilidade solidária com as novidades tecnológicas que facilitam mais a execução de sugestões conjugais aventadas.
Quando eu era jovem, meu pai me presenteou com um folheto que continha os Sete Pecados Sociais. Reproduzo-os para seu conhecimento: 1. Prazeres sem escrúpulos; 2. Riqueza sem trabalho; 3. Comércio sem moral; 4. Conhecimento sem sabedoria; 5. Ciência sem humanismo; 6. Política sem idealismo; 7. Religião sem amor. Que a Rita executava com muita disposição.
Posteriormente, um sábio baiano chamado Milton Santos, que não tinha crença religiosa, disse num dos seus livros que a felicidade se encontra nos benefícios infinitos, embora no mundo atual a cultura capitalista que respiramos busca centrar a felicidade na posse exclusiva de bens finitos, favorecendo um brutal egoísmo, onde a solidariedade se situa a muitos mil quilômetros de distância, sendo esta a razão primeira pela qual os quatro cantos do planeta se encontram bem próximos do fundo do poço.
A minha sempre lembrada companheira Rita, graduada em Ciências Sociais, espiritista de carteirinha e de conteúdo sementeiro, sempre me dizia que não se deve mercantilizar todas as coisas, sempre se reconhecendo em contínua CP – Cidadanização Política, jamais concordando com os que se proclamam idioticamente apolíticos, discordando energicamente dos que tencionam votar branco ou nulo, movendo-se existencialmente para baixo, tornando-se mentalmente manada.
Através da Rita, saudosa companheira, um dia conheci um sacerdote chamado Hélder Câmara, que era Arcebispo de Olinda e Recife, por isso ostentando o título de Dom. E com ele aprendi a sobreviver melhor, nos tempos terríveis do regime militar. Através de três pensares dele, aprendi a valorizar a significância de um existir sem jamais desistir, de travar o bom combate, sempre buscando diferenciar progressista de sectário. Através deles, até hoje bem guardados no fundo da minha memória, permaneço um social-democrata civilizado. Ei-los: a. Até um relógio parado tem razão duas vezes ao dia; b. Depois de uma noite de muita escuridão, surge sempre uma radiante madrugada; 3. Quando falo dos famintos, todos me chamam de cristão, embora quando busco explicitar as causas da fome me chamem de comunista.
Por aqui vou findando, Nando, desejando-lhe muita felicidade ao lado da Sissa, que um dia conhecemos, Ritinha e eu. Um abração bem arretado de fraterno quem não ficará só jamais, sempre com a presença da desencarnada nos meus horizontes cotidianos.