Vivian Seixas fez 40 anos no último dia 28 e ganhou um presente emocionante: a história de amor dos pais contada em livro. O valor do registro, no entanto, vai além da relevância familiar quando o pai é o músico Raul Seixas, um dos maiores artistas do Brasil, e a mãe, a produtora Kika Seixas, terceira mulher dele e uma das responsáveis pelo acervo do músico.
“Coisas do coração — Minha história com Raul Seixas” (Editora Ubook), de autoria da própria Kika e Toninho Buda, que acaba de ser lançado, traz 472 páginas com as lembranças da vida do casal, que se conheceu em 1979, quando ela era secretária executiva da gravadora Warner e deu uma carona para o músico.
—Sempre perguntava a minha mãe coisas do passado, da infância, e eu via que ela puxava lá no fundo do HD. Ela dizia: “Que bom que você perguntou, pois eu estava esquecendo” — diz a caçula de Raul, a DJ Vivian.
O maluco beleza teve mais duas filhas, de dois casamentos anteriores: Scarlet e Simone, que moram nos Estados Unidos.
— Há uns anos, minha mãe falou que queria escrever um livro sobre a vivência com meu pai, mas ela é muito low profile. Falei: “Mas pensa que é para mim! Para os fãs, lógico, mas para mim também” — lembra Vivian.
A história dessa relação — que não termina em 1984, quando eles se separam, muito menos em 1989, quando ele morre — não deve ser lida apenas como um presente para Vivian ou para os fãs. Há também um tom de acerto de contas, já que o livro expõe, com fac-símiles de diversas cartas, a relação da produtora com a mãe de Raul, Maria Eugênia. Numa delas, de 14 de outubro de 1989, menos de dois meses depois da morte do artista, a matriarca diz que mandou coisas do baú do Raul para a ex-nora(“Despachei dez volumes pela Fink Transportadora para sua casa(...). Você tem aí um belo acervo artístico e muitas coisas pessoais dele”).
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— Para quem me chamou de aproveitadora, de esperta, aqui está a carta dela me entregando o baú — diz Kika, que produziu, nos anos 1990, livros e shows com a marca “Baú do Raul”. — Um dos motivos que mais me deram ânimo nesse trabalho com o “Coisas do Coração”, além da minha filha, foram esses documentos. Dona Maria Eugênia era um exemplo de mulher.
Sylvio Passos, criador do primeiro fã-clube de Raul, que acabou virando amigo pessoal do ídolo e ficando com parte do baú, considera as contribuição de Maria Eugênia, morta em 2002, um dos pontos altos da obra.
Apoio das mulheres
São comoventes também as passagens que mostram como o vício em álcool e narcóticos dilacerou a relação entre Kika e Raul. A produtora relata vezes em que teve que dormir na casa de vizinhos porque o apartamento estava empesteado com cheiro de de éter e as decisões que tomou sobre internações compulsórias (“Uma das manhãs em que estava voltando do bar, foi surpreendido por dois enfermeiros que o agarraram e colocaram dentro de uma ambulância”). As passagens trágicas mostram o lado humano da estrela do rock.
Muitos desses episódios tristes foram novidade para Vivian. A DJ guardou na memória de criança capítulos lúdicos (que estão descritos no livro também) de o pai brincando de esconder bonecas do congelador ou contando histórias do peixinho Felipe.
— Minha mãe sempre me falou das coisas positivas dele. Das barras pesadas, ela quis me poupar — diz Vivian. — Fiquei ainda mais fã dela e da minha avó, que tiveram que lidar com o alcoolismo do meu pai. É um livro que mostra a força das mulheres.
'Terapia de regressão'
Além da intimidade de Raul como um sujeito normal (“A gente sentia o quanto ele tinha prazer em ser o nosso provedor”), “Coisas do coração”, acredita Toninho Buda, ajuda a desmistificar a linha dos tempos áureos do artista.
— Conseguiram montar um discurso de que Raul Seixas, nos anos 1980, foi só decadência. Realmente, quando se aproximou da Kika, em 1979, estava no fundo do poço. Mas, no ano seguinte, grava “Abre-te Sésamo” (CBS) e ganha disco de ouro (só em 1984, pelo selo Harmony). Na década de 1980, ele tem quatro discos de ouro (“Abre-te Sésamo”; “Plunct Plact Zoom”, com vários autores; “Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!”; e “A panela do Diabo”) — diz Toninho. — Raul foi um gênio sempre.
O amigo e escritor se emociona ao lembrar do processo de confecção da obra, que ele define como “uma terapia de regressão violentíssima”.
—Achávamos coisas e começávamos a chorar. Saímos dessa experiência com um alívio enorme, com gratidão.
Revirar as memórias intangíveis e pastas empoeiradas pode ser doloroso, mas é uma missão que Kika não parece querer desistir. A ex-mulher sonha em, depois da pandemia, conseguir apoio para montar um acervo aberto ao público com o guarda em casa. Na exposição, certamente estará a jaqueta de couro usada na foto de capa do livro, de Mário Luiz Thompson, onde Raul aparece, nas palavras de Kika, como “marido, pai, apaixonado”.