RIO - O carioca Rafael Lisbôa tinha 36 anos e se viu pronto para um sonho antigo: dar uma volta ao mundo. Com duas amigas, que "também trocaram a estabilidade na carreira para conhecer o planeta", ele embarcou no dia 20 de abril de 2017 para uma jornada de 365 dias, que passaria por 30 países nos cinco continentes.
Junto com Juliana e Elisa, suas companheiras na jornada, ele planejou todo o trajeto de acordo com o orçamento que cada um possuía. Foram 70 voos, por exemplo, e sempre com a bagagem máxima permitida: 23kg, o que demandou "bastante planejamento".
A jornada começou em Nova York, nos Estados Unidos e seguiu até Tóquio, passando por locais como Jamaica, Cuba, Namíbia, Ruanda, Líbano, Israel, Rússia, Espanha, Croácia, Marrocos, Islândia, China, Nepal, Camboja, Vietnã, Laos e Austrália, entre outros.
"O mundo é do tamanho da vontade e do orçamento de cada um. No nosso caso, juntamos as economias, pesquisamos bilhetes aéreos em promoção, compartilhamos quartos em albergues, usamos casas de conhecidos e desconhecidos, comemos em mercados e biroscas. Uma viagem com dinheiro contado e sem luxo, e, ao mesmo tempo, a experiência mais rica da nossa vida".
Ficou interessado? Sonha com uma viagem como essa? Confira o relato, as dicas e as lições que Rafael contou ao Boa Viagem.
Contrariando previsões
"Dar a volta ao mundo nunca pareceu algo possível, menos ainda provável. Voei pela primeira vez aos 23 anos e viajei ao exterior com 25. Tirar um tempo para desbravar todos os continentes, atravessar oceanos, mergulhar em culturas variadas, conhecer gente de sotaques tão diferentes sempre soou utópico, uma aventura para quem ainda é muito jovem ou um capricho de quem é muito rico. Uma empreitada que talvez até faça sentido para um cidadão comum que mora em um país com economia estável, moeda forte e oferta abundante de empregos. Mas, contrariando todas as previsões, eu e duas amigas, já com quase 40 anos, que, em duas décadas como jornalistas e engenheira, acumulamos olheiras, cabelos brancos, boas experiências profissionais, mas nenhuma fortuna, nos lançamos no mundo, sem amarras, por um ano.
Minhas duas companheiras de viagem, Juliana e Elisa, haviam decidido trocar a acomodação de suas carreiras estáveis pela excitação de uma jornada transformadora ao redor do planeta. E eu, que, com o fim das Olimpíadas, concluíra um ciclo de longos anos de trabalho intenso na comunicação da cidade do Rio e seus grandes eventos, resolvi embarcar junto na ousadia delas. Tendo estudado relações internacionais na Universidade de Columbia, em Nova York, e na Fundação Getúlio Vargas, achei que era a oportunidade de vivenciar o mundo para além das salas de aula e dos livros acadêmicos.
Preparativos para rodar o planeta
Antes de cair na estrada, porém, foi preciso resolver questões práticas: roteiro, bagagem, vacinas. O quebra-cabeça de países a serem visitados deveria levar em conta o perfil de cada um nós, que formávamos um trio bem heterogêneo. Elisa, que é uma amante da natureza, adora explorar paisagens remotas e ter contato com todo tipo de animal. A preferência da Juliana é por sítios históricos, manifestações culturais, experiências antropológicas. Já eu sou um apaixonado por cidades e tudo o que a vida urbana, na sua pluralidade e intensidade, pode oferecer, inclusive à noite e de madrugada.
Definir a nossa lista de destinos foi, então, um exercício de paciência e flexibilidade, uma prévia do espírito de negociação permanente que o mochilão pelo mundo demandaria de nós. Conciliar vontades tão diferentes obviamente deu trabalho, mas a grande vantagem foi nos forçar a embarcar na ideia do outro e vivenciar situações que nunca haviam sido cogitadas. E, assim, graças a essa combinação de gostos distintos, cada um nós visitou países que jamais estiveram na lista de prioridades e se surpreendeu com sensações e experiências inimagináveis.
Fechados os países do nosso tour, faltava definir o roteiro. E, para isso, usamos dois critérios: clima e passagem aérea de volta ao mundo. Para economizar espaço na mala, que deveria ter apenas 23 kg por causa das limitações na maioria dos voos, escolhemos seguir o verão. Construímos nosso cronograma de modo que visitaríamos os países sempre na estação mais quente. Isso significaria menos roupas para carregar, mais possibilidades de programas ao ar livre e de interação com a população local. E comprovamos in loco que os mais diferentes lugares e povos, em qualquer canto do planeta, costumam desabrochar sob a luz do sol.
Comprar um bilhete de volta ao mundo nos ajudou também a organizar o nosso ano sabático. As principais alianças de companhias aéreas possuem esse tipo de passagem, que se baseia, no geral, nas mesmas regras: o viajante deve seguir um mesmo sentido no globo, passar obrigatoriamente por um determinado número de continentes e oceanos e retornar ao local de origem no período de até um ano. Na nossa pesquisa, descobrimos que o máximo de destinos que essa modalidade de ticket aéreo permitia era 16 – número insuficiente, óbvio. Definimos os 11 trechos mais longos, marcamos as datas (que poderiam ser alteradas sem custo) e os demais deslocamentos seriam adquiridos individualmente, conforme a viagem fosse acontecendo. Ou seja, havia um planejamento macro, mas uma liberdade imensa para encurtar ou prolongar nossas estadias, alterar o nosso roteiro e adaptar nosso mochilão.
Para seguir de vez para o aeroporto rumo ao mundo, marcamos antes uma consulta gratuita no Centro de Medicinas para Viajantes da UFRJ. O serviço, que é oferecido no campus da Praia Vermelha, foi fundamental para nos orientar sobre os riscos e cuidados de cada lugar que visitaríamos. Dona de uma rara paciência, a infectologista Karis Rodrigues listou as vacinas e remédios a que deveríamos ter acesso para não sermos vítimas das doenças endêmicas de cada país.
Lições da jornada
Roteiro definido, vacinas em dia, bilhete na mão, uma mala de apenas 23 kg (e muito desapego), teve início, enfim, a nossa jornada. Passados exatos 365 dias, foram mais de 30 países, cinco continentes, 70 voos, 30 ônibus, 18 trens, barcos, vans, tuk-tuk e camelo.
No caminho, encontramos muitos como nós, com origens e motivações diversas. Compreendemos logo que rodar o planeta é mais comum e mais possível do que se tem ideia. É menos uma questão de dinheiro e mais de disponibilidade. E aí está a primeira lição que aprendemos: o mundo é do tamanho da vontade e do orçamento de cada um. No nosso caso, juntamos as economias, pesquisamos bilhetes aéreos em promoção, compartilhamos quartos em albergues, usamos casas de conhecidos e desconhecidos, comemos em mercados e biroscas. Uma viagem com dinheiro contado e sem luxo, e, ao mesmo tempo, a experiência mais rica da nossa vida.
A segunda lição é que o mundo é muito maior do que as nossas expectativas. Existem bem mais de sete maravilhas. Nem a lista da Unesco, com 1.092 patrimônios da humanidade, dá conta de tantas belezas espalhadas. Não importa se o país é grande ou pequeno, rico ou pobre, tem sempre algo de apaixonante. É difícil escolher um lugar favorito. O nosso mochilão foi um conjunto de experiências inesquecíveis. Um em infinitos recortes possíveis no planeta, que incluiu nadar com leões-marinhos em Galápagos, caminhar com gorilas em Uganda, explorar a natureza selvagem da Cratera de Ngorongoro, dormir sob o céu estrelado do Saara e ver o dia nascer na duna mais alta na Namíbia.
A nossa volta ao mundo contou com a imponência dos Himalaias, o perfume das cerejeiras do Japão, a mistura de fogo e gelo da Islândia, o vermelho do Outback australiano e o azul turquesa das praias croatas e tailandesas, o gosto do hummus libanês e do curry indiano. Teve Petra, Muralha da China, Taj Mahal, templos do Laos e do Camboja, mesquitas do Marrocos, igrejas da Rússia. Testemunhamos as múltiplas demonstrações de fé no Oriente Médio e na Índia e também as transformações em andamento em Cuba, África do Sul, Ruanda e Vietnã.
A terceira e mais importante das lições é que, apesar do seu gigantismo e diversidade, o mundo se revelou menor e mais parecido do que jamais imaginamos. É um quintal de casa com oceanos no meio. Por trás de cores e sabores tão distintos, existem traços comuns que tornam tudo muito familiar.
A religiosidade é um desses aspectos universais. Os pontos turísticos mais famosos são, em geral, templos religiosos. Toda e qualquer sociedade, da mais primitiva à mais moderna, tem tentado responder ao mesmo questionamento: de onde viemos e para onde vamos? E a fé de cada povo, utilizada para explicar o inexplicável desde sempre, cria narrativas distintas, com regras e deus (ou deuses) próprio. Ao percorrer o mundo e ter contato com múltiplos credos, porém, é possível perceber que, mesmo diferentes e por vezes rivais, essas doutrinas fazem parte de uma mesma essência que une espiritualmente o planeta.
O fascínio pela água é outro elemento que se reproduz. É natural que, para as civilizações mais antigas, organizar-se em torno de uma fonte de água potável era a diferença entre sobreviver ou não. Mas ainda hoje, nas cidades mais urbanizadas, todos querem morar perto da água: lagos, rios, cachoeiras, praias. É lá que as pessoas se reúnem nas folgas, inclusive nos cantos mais frios do planeta.
O pôr do sol é mais uma unanimidade que ultrapassa fronteiras. Não importa o idioma, aquele espetáculo de cores fala por si só e atrai os olhares em qualquer lugar. Aplaudir o pôr do sol no Arpoador é mais global do que se pensa. Na praia, no deserto, na geleira, entre arranha-céus, todos param para contemplar o sol se despedir, ainda que aquele fenômeno se repita diariamente.
Provavelmente nada é tão universal quanto a família. Nenhuma instituição é mais forte. Independentemente do formato e do arranjo, família é mesmo tudo igual. Somos seres sociais, existimos a partir da relação com o outro. São os vínculos pessoais que nos conectam com o exterior, seja nas paisagens gélidas e solitárias da Sibéria ou na confusão de cidades populosas como Tóquio. E são essas ligações afetivas que fazem qualquer viajante compulsivo - como eu, com carimbo de 55 países no passaporte - querer sempre voltar para casa, sabendo, claro, que um novo encontro com o mundo é questão de tempo".