João Batista de Siqueira, Cancão, pernambucano de São José do Egito (Mai/1912 – Jul/1982)
* * *
SONHO DE SABIÁ
Um sabiá diligente
Voou pela vastidão
Mas por inexperiente
Caiu em um alçapão
Depois de aprisionado
Ficou mais martirizado
Pensando no seu filhinho
Implume, sem alimento,
Exposto à chuva e ao vento
Sem poder sair do ninho
Deram-lhe por seu abrigo
Uma pequena gaiola
Num casebre de um mendigo
Que só comia de esmola
Só vivia cochilando
Com certeza imaginando
Sua liberdade santa
Ia cantar, não podia,
Que sua voz se perdia
Logo ao sair da garganta
Tornou-se a pena cinzenta
Em seu profundo castigo
Na saleta fumarenta
Da casa do tal mendigo
Sempre triste, arrepiado,
Nesse viver desolado
Ia um mês, vinha outro mês,
Assim completou um ano
Sentindo o seu desengano
Nunca cantou outra vez
Dormindo, uma tarde inteira
O pobre do passarinho
Sonhou que ia à palmeira
Onde tinha feito o ninho
Olhava, em frente, as campinas
Via por trás das colinas
A natureza sorrindo
Ao sentir a liberdade
Pensou ser realidade
Sem saber cantou dormindo
Depois, sonhou que voltava
À terra dos braunais
Por onde sempre cantava
Junto a outros sabiás
Pousava nas laranjeiras,
Passava nas ribanceiras
Olhando o clarão do dia
Voava por sobre o monte,
Voltava a beber na fonte
Que toda manhã bebia
No sonho via as favelas
Criadas nos carrascais
Voou, baixou, pousou nelas
Cantou os seus madrigais
Voltou, e colheu orvalhos
Que gotejavam dos galhos
Dos frondosos jiquiris
Contente, abriu a plumagem,
Pra receber a bafagem
Das manhãs do seu país
Foi à terra dos palmares
Atravessou toda a flora
Cantou por todos lugares
Que tinha cantado outrora
Passou pelos mangueirais
E com outros sabiás
Cantou sonora canção
O seu som melodioso
Estava mais pesaroso
Devido a sua emoção
Viu a vinda do inverno
Nos quadrantes da paisagem
Ouviu o sussurro terno
Do bulício da folhagem
Cantava pelo arrebol,
Com o brilho morno do sol
Morrendo nos altos cumes
Sentia, quando cantava,
Que seu coração chorava
Com mais tristeza e queixumes
Sonhou catando semente
Num campo vasto e risonho
Se sentia tão contente
Que sonhou que fosse um sonho
Olhava pra vastidão
Sentia no coração
Um regozijo profundo
Todas delícias sentia
Às vezes lhe parecia
Vivendo fora do mundo
Atravessou os verdores,
Passou por entre as searas,
Cantou pelos resplendores
Das manhãs frescas e claras
Passou por um campo vago,
Bebeu das águas de um lago,
Pousou em um arvoredo,
Entrou em um bosque escuro,
Aí sonhou um futuro
Tão triste que teve medo
Depois, sonhou que estava
Trancado numa gaiola
Ouvindo alguém que cantava
Na porta, pedindo esmola.
Ao despertar de momento
Reparou seu aposento,
Ouviu falar o mendigo
Fechou os olhos pensando
Sentiu seu íntimo chorando
No rigor do seu castigo.
Ainda em vão procurava
Sair daquela prisão
Seu olhar denunciava
Piedade e compaixão
Ao pensar na liberdade
A mais pungente saudade
Devorava o peito seu
Assim, o cantor da mata,
Ferido da sorte ingrata,
No outro dia, morreu.
* * *
ÁRVORE MORTA
Foste tu, velha braúna
A divisão da paisagem
A gigantesca coluna
Da Natureza selvagem
Abrias tua ramagem
Pelas tardes nevoentas
As borrascas violentas
Nunca te causaram danos
Antes de trezentos anos
Te açoitaram mil tormentas
Respeitaram-te os machados
Das primeiras gerações
Teus grossos galhos crispados
Desafiaram tufões
Venceste mil furacões
Desde os tempos de Cabral
Atalaia colossal
Soberbo gigante antigo
Talvez até deste abrigo
Aos filhos de Portugal
Por certo ouviste as cantigas
Das tribos depois da guerra
Filha das lendas antigas,
Rebento santo da Terra
Antes, ó virgem da serra,
Dos danos daquele raio
Pelo teu leve desmaio
Colhias na fronde tua
Lindos sorrisos da Lua
Nos noites do mês de maio
Estes teus grandes madeiros
Há uns cem anos passados
Se sacudiam maneiros
Cheios de viço, copados
Nos teus ramos delicados
Nas horas do arrebol
O pequeno rouxinol
Cantava com mais ternura
Colhendo a doce frescura
Das brisas do pôr-do-sol
Já tens um lado comido
Da era que foi ingrata
Este teu galho pendido
Relembra longínqua data
Em teu pé uma cascata
Se despenhava fremente
Teu tronco, velho e doente
Pelo cupim estragado
Foi muitas vezes lavado
Pela fragosa corrente
Hoje, só tens a carcaça
Sobre a estrada caída
Uma pessoa que passa
Medita e sai comovida
Uma parte apodrecida
Onde outrora os sabiás
Voando dos laranjais
Vinham pousar cantando
E hoje passam voando
Se assustam, não pousam mais
Das plantas foi a mais bela
Que entre a flora viveu
Quem sabe na vida dela
Quantos janeiros venceu …
Depois murchou e morreu
Ficou dos ramos despida
Para o poente estendida
Sem verdura e sem beleza
Talvez que nessa tristeza
Sinta saudades da vida.
* * *
MOMENTOS MATUTINOS
Nas noites caliginosas
As estrelas luminosas
Pelas grimpas montanhosas
Derramam luz soberana
As florzinhas da paisagem
Dormem por entre a ramagem
Talvez sonhando a imagem
Dos sorrisos de Diana
Os pirilampos pequenos
Vindos de outros terrenos
Pousam, sutis e serenos
Pelos estrumes da terra
Os perfumados vapores
Passam roçando os verdores
Levando os leves rumores
Das águas brandas da serra
A Lua, alta e feliz
Linda mãe dos bugaris
Derrama raios sutis
Por toda extensão da selva
Dos lírios desabrochados
Brancos e imaculados,
Os seus perfumes sagrados
A brisa bafeja e leva
Dentro da floresta densa
A vegetação imensa
Parece ficar suspensa
Nesse ditoso momento
As carnaúbas rendadas
Criadas lá nas chapadas
Abrem as frondes copadas
Para a passagem do vento
A brisa sopra dolente
Por entre a flora virente
O céu de cor transparente
Azul, sem uma só mancha
Branca neve matutina
Envolve a vasta campina
Toalha de gaze fina
Que o dia rasga e desmancha
As corujas traiçoeiras
Com suas asas maneiras
Passam nos ares, ligeiras
Para o grotilhão enorme
Foge o tenebroso véu
Na aroeira, o xexéu
Olhando as cores do céu
Desperta a mata que dorme
Para as bandas do levante
Lindo clarão rutilante
Vem-se alargando, brilhante
Cheio de glória e encanto
A neve se desenrola
E o beija-flor, por esmola
Em cada fresca corola
Deposita um beijo santo
Dos floridos vegetais
Os orvalhos matinais
Como gotas de cristais
Se desprendem tremulantes
Um traço de fina luz
Aquece os verdes bambus
Dos altos cumes azuis
Das cordilheiras distantes
A borboleta amarela
Passa juntinho à janela
Vai pousar, serena e bela
Num lindo caramanchão
O sabiá, lá da mata
No ingazeiro desata
A nota suave e grata
De sonorosa canção
Cantam na serra os pastores
Os tempos de seus amores
Sentindo os brandos calores
Dos raios do sol nascente
E a Natureza selvagem
Estende a sua ramagem
Como rendendo homenagem
A um Deus onipotente.
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SONHO DE UM POETA
Dormi, dormi na velhice
Sonhei que era pequeno
Senti o zéfiro brando
Soprar, suave e sereno
Aromatizando as plagas
Do meu sagrado terreno
Ausente do meu torrão
Grande saudade me encerra
Na grata imaginação
Lá da palhoça da serra
Dormindo, o sonho levou-me
Aos campos de minha terra
Minha terra tem palmeiras
Tem bosques, carnaubais
Tem vales, tem serranias
Gigantescos laranjais
Outra terra como a minha
Eu sei que não vejo mais
O vento da minha terra
Eu acho mais perfumado
O sol é mais luminoso
O céu é mais estrelado
As noites são mais serenas
O mundo, mais descampado
Por sonho via os verdores
Daquela terra querida
A brisa soprava lenta
Dentro da veiga florida
Quebrando o grande silêncio
Da floresta adormecida
As brisas nos mangueirais
Perpassavam com meiguice
Onde meus pais descansavam
Das fadigas da velhice
Olhando eu colher as flores
Cheirosas da meninice
Olhava as lindas chapadas
Onde cantava o xexéu
Lugares onde eu brincava
Descuidado, sem chapéu
Correndo à margem dos lagos
Olhando as sombras do céu
Por sonho via os coqueiros
De monstruosos tamanhos
Ouvia a voz dos pastores
Admirava os rebanhos
Via os lagos em que eu
Tomei os primeiros banhos
Via os verdejantes bosques
As esplanadas mais belas
Pareciam um mar de luz
Os rosais, as caravelas
As aves, as mariantes
Que viviam dentro delas
A mata densa e florida
Se estendia divina
Os orvalhos tremulavam
Porque o véu da neblina
Se desdobrava sereno
Na majestosa campina
O cheiro de várias flores
Aromatizava os prados
O coqueiro erguia a fronde
Pelos ventos perfumados
Que vinham lá dos confins
Dos campestres matizados
Os grandes jacarandás
Faziam grossas colunas
Os sabiás procuravam
Alguns fragaços nas dunas
Para a construção dos ninhos
Na copa das cabiúnas
Eram quase sete horas …
Depois de ter despertado
Na grande imaginação
Do que havia sonhado
Senti saudades do berço
Que fui nascido e criado
Este sonho eu nunca mais
Afastei do pensamento
Fiz dentro do coração
Um forte revestimento
Pra suportar a saudade
Que chega a todo momento
Todo sonho é ilusão
Posso afirmar seriamente
Dormindo se sonha, às vezes,
Noutro lugar diferente
Acho que seja por causa
Do pensamento da gente
Hoje nos meus 43 anos de vida me ponho perplexa diante destes extremos. Pois me dei conta, poderia ter morrido sem conhecer tamanha beleza. Chorei de alegria ao sentir as emoções da declaração. Obrigada por compartilhar esta riqueza que tenho como vívida.
Como consigo a poesia SEIS HORAS NO CEMITÉRIO, de Cancao ?
Ao encontrar esse precioso escrito me remeti ao passado, logo me lembrei do meu avô que por ele tanto foi recitado as obras de cação fazem parte do seus guardados.