Dentre os destaques da última edição da São Paulo Fashion Week, mês passado, a Ponto Firme chamou a atenção não só pelo uso delicado da arte milenar do crochê em looks construídos a partir de materiais descartados e itens de doação, mas também pela história por trás da marca. Trata-se de um projeto social que capacita e ressocializa sentenciados e egressos do sistema penitenciário por meio da moda, com mais de 150 colaboradores no portfólio.A Ponto Firme é apenas uma das inserções de moda no cárcere que vem transformando a vida de homens e mulheres no Brasil. O projeto PanoSocial e a marca mineira Doisélles também têm ajudado a costurar novas narrativas na vida de sentenciados e egressos do sistema penitenciário nos últimos tempos.
Idealizado pelo estilista Gustavo Silvestre, de 42 anos, a Ponto Firme nasceu em 2015. A ideia era escapar do ritmo acelerado da indústria da moda e redescobrir o crochê, técnica enraizada na família do designer. “Minha mãe, avós e tia faziam crochê. Cresci vendo isso, mas existia muito preconceito, e elas nunca me ensinaram”, lembra o estilista. Na sequência do surgimento do projeto, ele foi convidado para dar aulas na Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos, conhecida pelas oficinas de teatro e música.
Apesar do ambiente masculino e machista, o estilista conta que os presidiários são receptivos e interessados em aprender. “A sala de aula é um respiro para eles. Da porta para dentro, são alunos”, analisa. No início, as aulas eram uma vez por semana e, além de certificado, os presos ganham remissão de pena a cada 12 horas trabalhadas.
Com o tempo, a oficina passou a acontecer duas vezes por semana e o trabalho desenvolvido ganhou corpo e volume. A Ponto Firme integra, desde 2017, a grade de desfiles da São Paulo Fashion Week. As criações dos encarcerados também já foram expostas na SP-Arte, na Pinacoteca de São Paulo e em Nova York.
Em sua maioria, o perfil dos detentos se repete: jovens, negros e periféricos, de 18 a 29 anos, presos por crimes ligados ao tráfico de drogas ou roubos e furtos. “A prisão por si só é uma contradição. Ninguém aprende a nadar fora da piscina, assim como ninguém aprende a viver em sociedade fora dela”, opina Luis Carlos Valois, de 53 anos, juiz, mestre e doutor em Direito Penal e criminologia pela USP. “Mais do que ressocializar, projetos sociais oferecem dignidade.”
A trajetória da estilista Raquell Guimarães, de 40 anos, se entrelaça com o crochê e provoca mudança de vida de encarcerados. Fundadora da marca Doisélles, Raquell procurava uma alternativa para sua produção, antes realizada por mulheres aposentadas. “Percebi que o artesanato era um hobby e não um trabalho de oito horas por dia. Elas faziam durante a folga. Então, frequentemente, tinha problemas de padronização, além de perder prazos e entregas”, conta.
A busca por mão de obra especializada e comprometida somada a um episódio marcante no metrô de São Paulo — ela teve uma conversa emocionante com a a mãe de um detento do Complexo Penitenciário do Carandiru — deram origem ao projeto Flor de Lótus, em 2005. A inciativa de Raquell revolucionou o Pavilhão 1 da Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires, em Linhares (MG). Ela ensinou os detentos a tricotarem em troca de remissão de pena e salário. “A gente dá uma segunda chance a quem não teve nem a primeira”, avalia.
Além dos detentos, há também os egressos, que lutam dobrado para serem inseridos no mercado de trabalho. E a situação não está fácil para ninguém, no Brasil, a expectativa de desemprego deste ano é de 14,5%, segundo a agência de classificação de risco Austin Rating. “Recomeçar uma nova vida é muito difícil. Não se encontra alguém que dê oportunidade para quem errou”, atesta Claudinei Ribeiro, de 49 anos, egresso que, atualmente, ministra a cooperativa de costura do Instituto Recomeçar.
Em São Paulo, a PanoSocial, cofundada por Natacha Barros, de 44 anos, tenta mudar essa realidade empregando ex-detentos em sua rede de produção de roupas e acessórios. A PanoSocial também é engajada em causas ambientais. A marca propõe o uso de matérias-primas ecológicas, como o algodão 100% orgânico, e adere a processos produtivos sustentáveis.
Sobre a realidade desigual do Brasil, a estilista reflete: “Ninguém nasceu para matar, roubar e traficar. Mostrar isso para quem consome nossas camisetas é uma grande motivação. A costura é o veículo e a ferramenta de transformação social”.