SÃO PAULO — Vivendo o maior desafio de sua carreira em mais de 20 anos de trabalho como profissional da saúde, a coordenadora da Odontologia do Hospital São Paulo e a primeira voluntária brasileira a receber a vacina em teste contra o coronavírus, Denise Abranches, de 47 anos, diz que a necessidade em ajudar a ciência no combate à doença que já matou mais de 500 mil pessoas no mundo é a sua principal motivação para participar.
Mesmo que a vacina ainda esteja na fase de testes, a cirurgiã dentista acredita que participar do projeto da Universidade de Oxford em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) na busca por um imunizante contra a Covid-19 gera uma sensação de "dever cumprido".
— Se eu tenho o perfil e estou exposta ao vírus diariamente no hospital, não poderia fazer diferente. Os números me assustam muito e eu não poderia ficar só sentada, lendo o que está acontecendo — afirma.
Denise faz parte do grupo de 2 mil voluntários em São Paulo e no Rio de Janeiro que estão recebendo doses do imunizante em teste. No estado, segundo a Unifesp, passam por testes profissionais da saúde e outros funcionários do Hospital São Paulo, que têm entre 18 e 55 anos, estão expostos ao vírus, mas não foram infectados.
O Brasil está dentro do plano mundial de desenvolvimento da vacina e é o primeiro país a realizar os testes de Oxford depois do Reino Unido. Os testes com brasileiros vão contribuir para o registro da vacina no Reino Unido, previsto para o final deste ano. O registro formal, entretanto, só deve ocorrer após o fim dos estudos em todos os países participantes.
O processo de Denise como voluntária começou em 20 de junho, dia em que participou da triagem com um médico para entender como seria o estudo. Também foram realizados exames de sorologia para comprovar que ela ainda não tinha desenvolvido anticorpos contra o coronavírus e, portanto, não tinha sido contaminada pela doença anteriormente.
— Só pude participar porque deu negativo e ainda não tenho as defesas necessárias — lembra.
Três dias depois, explicou a cirurgiã, foi aplicada a dose. Como o estudo é randomizado, parte do grupo recebeu a vacina em teste contra a Covid-19 e outra parte recebeu um imunizante contra meningite. A seleção aleatória é realizada para que se observe como será o a resposta imunológica dos voluntários testados de forma imparcial.
— Estou confiante de que eu tenha recebido a da Covid, mas nem os pesquisadores sabem dizer qual eu recebi. É confidencial. Isso será revelado lá na frente, para saber se eu fui imunizada, ou não — explica.
Agora, a voluntária precisa ir algumas vezes ao Crie (Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais) da Unifesp para verificar as respostas imunológicas. Além disso, tem preenchido uma espécie de "diário eletrônico".
- Respondemos se estamos com alguma reação, ou desconforto. Eles chamam de eventos adversos. Mas não senti nada até então, nenhuma manifestação significativa.
Apesar de toda complexidade do vírus e da produção da vacina ainda estar em fase de testes, Denise descartou qualquer tipo de insegurança ao se tornar voluntária:
— Não me deu medo, porque já estou no meio do caos mesmo. Vivo diariamente no meio dos pacientes de alta complexidade, entubados na UTI. Eu já poderia ter sido contaminada em algum momento, mas não fui por causa da alta disciplina. Há um tempo, o medo da contaminação era imenso. É um protocolo Chernobyl, mas agora estou muito mais tranquila — revela.
Antes de ser aplicado em seres humanos, o patógeno foi alterado em laboratório e tornado incapaz de se reproduzir. Ele se transforma em uma vacina após ser inserido o fragmento de uma proteína do novo coronavírus. Ele, então, atua como antígeno e faz o sistema imune se preparar para a chegada do vírus verdadeiro.
Para a profissional, o dia a dia de contato com as vítimas da Covid-19 foi um forte impulso para que ela se tornasse voluntária na produção da vacina.
— É uma satisfação poder ajudar os pacientes que estão na minha cabeça quando vou embora do hospital. A gente não fica indiferente a eles. Mexe muito comigo o fato de um paciente não poder sequer ver e falar com a família. E se de repente você não tivesse mais contato com um familiar e nem do velório pudesse participar? É um ato de amor se voluntariar — diz a cirurgiã.