PRETO, O QUÍPER CHAMPRADOR
Raimundo Floriano
Matéria publicada no Jornal da Besta Fubana no dia 17.3.14.
Já estamos na Quaresma, e o ano teima em não começar. Isso vai continuar assim até dezembro. Praticamente, podemos passar uma borracha no ano de 2014, pelo menos aqui no Brasil, considerando-o como se não tivesse existido.
Senão, vejamos. Passada a Quaresma, vem a Semana Santa; depois dela, a Copa do Mundo, que acabará em meados de julho; a seguir, a campanha eleitoral, as Eleições, com Primeiro Turno em 5 de outubro e Segundo Turno a 26 do mesmo mês; Finados e Proclamação da República em novembro; aí, entra-se no clima de Natal, Réveillon, e pronto! Acabou-se o que não foi-se!
E não sou só eu que pensa assim não. Vejam esta charge publicada dia 5.3.14, Quarta-feira de Cinzas, no Correio Braziliense:
Por isso, respirando esse ar futebolístico, que perdurará, como foi dito, até meados de julho, começo contando-lhes um caso muito engraçado, chistoso, do qual vocês vão rir pra cadete.
Era no tempo do Réis!
Tempo em que a terminologia do esporte era bem diferente: o goleiro era chamado de quíper; na defesa, jogavam os beques; no meio de campo, os ralfes; no ataque, a linha, onde se destacavam o ponta-esquerda, o ponta direita e o centroavante, que era chamado de centerfor. O juiz ou árbitro era o rifiri; o impedimento era ofisaide; escanteio era córner; a falta era mão ou bruta; e pênalti era pênalti mesmo.
Acervo Google
Tempo em que a bola era fechada com cadarço e não tinha nome de batismo como as das últimas Copas. Eram chamadas de pelota, couro, pneu, ou, simplesmente, bola.
Estávamos no início da Década de 1940, quando ainda não fora mudado nosso padrão monetário para o Cruzeiro. Era, portanto, no tempo do Réis. O que nada tem a ver com o que aqui será narrado e serve apenas para situar o episódio nas calendas de antigamente.
Havia, em Balsas, um negro conhecido como Preto, agregado do Tio Cazuza, de Seu Tarcísio Moreira, de Seu Elias Kury, de Seu Luiz Silva e de outros comerciantes, prestando muitos tipos de serviço, como varrer a loja, carregar fardos de mercadorias no lombo – trabalho de cangueiro, como era chamado o estivador por lá –, sendo também chofer e, nos finais de semana, quíper da Seleção Balsense.
O “estádio” não tinha grama, era um campo escalvado, chão duro e batido, onde cada queda resultava em ferida ou contusão grave. Não havia rede nas traves. Muitas vezes, o rifiri, devido a alguma tomada de decisão polêmica, voltava pra casa debaixo de taca. Num campo sem marcação de cal no meio, nas laterais, na linha de fundo, ou definindo a grande e a pequena área, apitar era atividade intensamente heróica, arriscosa e insalubre por demais.
Imaginem o sacrifício, naquele tempo, do quíper, sem luvas, caneleiras, joelheiras e tornozeleiras, enfrentar a brutalidade dos atacantes adversários.
Mas o Preto a tudo enfrentava com bravura e de modo estiloso. Inventara uma jogada a que deu o nome de champrar. Quando a bola vinha na altura conveniente, ele a agarrava, champrando-a, nesta posição:
Preto champrando a pelota
Isso fez escola.
No entanto, o que eu pretendo lhes contar nada tem a ver com o futebol.
Certa vez, o Tio Cazuza e alguns comerciantes amigos viajaram a São Paulo, no intuito de comprarem mercadorias e um caminhão, que as transportaria, levando o Preto como chofer.
As negociações demoraram, levaram dias, fazendo com que o Preto, em dado momento, chegasse para o Tio Cazuza e falasse:
– Seu Cazuza, eu quero ir simbora! Num aguento essa vida de Sun Palo!
Tio Cazuza até se espantou, pois o Preto estava recebendo o melhor tratamento possível, hospedado no mesmo hotel que os patrões e comendo nos mesmos restaurantes. Ao perguntar-lhe a causa de seu desassossego, o Preto respondeu:
– Seu Cazuza, neste mundo, só ficou um divertimento pra pobre como eu, que é f*der, mas já tô com quaje um mês aqui e ainda num dei nem uma bimbada! Vou simbora! Fico aqui mais não!
Diante do exposto, e com todas as pendências mercantis resolvidas, Tio Cazuza e seus companheiros encetaram a viagem de volta no dia seguinte.
Contam que, na estrada, confortavelmente na boleia do Chevrolet zerado, o Preto, Macunaíma sul-maranhense, enquanto dirigia, entoava este refrão que, mais de 30 anos depois, viraria tema de enredo de uma escola de samba carioca:
“Vou simbora, vou simbora
Eu aqui fico mais não
Vou voltar pras rapariga
Dos cabaré do sertão”
"
"