Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Coluna do DIB quarta, 14 de dezembro de 2016

PREJUDICADA

PREJUDICADA

A. C. Dib

 

                   Corre a história em Teresina, na primeira metade do Século XX. Rogo ao leitor alguma paciência e certa compreensão. O texto não deve ser lido pela óptica do homem do Século XXI, eis que a cultura – provinciana – que o governa é aquela reinante no início do passado século – altamente machista e preconceituosa, portanto. Assim, espero não ser julgado: apenas relato os fatos – reais −, retratando o pensamento imperante naqueles idos longínquos.

                   O Estado Novo promovia, então, censo demográfico nacional, coletando, casa a casa, bairro a bairro, município a município, dados estatísticos de nossa população, como número de homens, de mulheres, de crianças e idosos, onde e como viviam os brasileiros, profissão, renda, condições sanitárias e de saúde e outros valiosos dados numéricos.

                   A jovem Maria dos Remédios, solteira e residindo com os pais, prendada e hospitaleira que era – além de inteirada do profissionalismo, da seriedade e da boa compleição física do jovem entrevistador – decidiu homenagear o ilustre e importante visitante.

                   Costumava, todas as tardes, preparar esmerado lanchinho para os pais, para si e para os habituais frequentadores de seu lar. Naquele dia, porém, segura de que, pela sequência, a próxima casa visitada pelo recenseador seria a sua, esmerou-se ainda mais no preparo da merendinha vespertina.

                   Forrou a mesa de jantar com a melhor toalha da casa, que era de linho, bordada e originária da Ilha da Madeira, adornando-a com a melhor porcelana – inglesa – de seus genitores, usada, exclusivamente, nas mais seletas situações sociais, e desencaixou do estojo de madeira a prataria espanhola.

                   Serviu pudim de laranja – chamado, no velho Piauí, de creme de laranja −, doce de buriti (do tradicional caixotinho, feito de talas da palmeira), além da suculenta sebereba de buriti (tomada líquida, com ou sem farinha), aluá, refresco de tamarindo, leite quente (com o bico da leiteira protegido por abafador), chá de capim cidreira, chocolate quente, arroz-de-leite (dito, também, arroz-doce), bolo frito (feito de tapioca), cuscuz de milho e cuscuz de arroz, goiabada, compota de caju, siricaia, banana frita (generosamente polvilhada com açúcar e canela) e a irresistível rosca salgada. Para arrematar, serviria licor de jenipapo, em delicados cálices de cristal da Boêmia, que faziam jogo com a licoreira.

                   Grande foi a surpresa do recenseador − senhor Nonato, assim o chamavam − ao se deparar com tão bela e tentadora mesa, e com o inusitado convite da anfitriã e de sua mãe para que ele as honrasse, acompanhando-as no lanchinho. Rapaz sistemático, senhor Nonato, a princípio, a pretexto de que estava a trabalho, buscou resistir, mas, frente à insistência e à simpatia de Remédios, terminou por dar ouvidos ao sofrido estômago que àquela altura da tarde já se punha a roncar.

                   Peremptoriamente, no entanto, não cedeu à proposta de interromper a entrevista para lanchar. Perdendo-se pela gula, um pouco atrapalhado com xícara, prancheta, colheres e com seus formulários e demais alfarrábios, ia, a um só tempo, mastigando e indagando, devorando e questionando. E lá ia o entrevistador, lançando ao ar suas perguntas e alguns grãos de farelo.

                   Encontravam-se, nesse momento, ambos sozinhos à mesa, já que o pai de Remédios ainda não havia regressado da labuta e sua mãe estava, juntamente com a empregada, a promover pequenas diligências na cozinha.

                   − Nome completo, por favor – falou Senhor Nonato, de boca cheia.

                   − Maria dos Remédios Beltrão Gouveia.

                   − Data de nascimento?

                   − Essa não é de bom tom, Senhor Nonato. Essa pergunta eu pulo.

                   − Pois que seja. Vamos, pelo momento, omitir essa informação. A senhorita trabalha?

                   − Faço o Normal e ajudo mainha aqui na lida.

                   − Estado civil?

                   Nesse momento, Remédios enrubesceu.

                   Frente à hesitação da moça, Senhor Nonato interrompeu a merenda, pigarreou, mirou-a e repetiu o questionamento.

                   − Estado civil, Dona Remédios? – disse, caneta tinteiro em riste, suspensa sobre o papel.

                   Remédios baixou a vista, revelando constrangimento. Timidamente, olhou em volta certificando-se de que não havia mais ninguém na sala além do Senhor Nonato.

                   − Guardamos rigoroso sigilo das informações coletadas, Dona Remédios! – disse Nonato, apercebendo-se da dificuldade de sua entrevistada. – Seu nome não será associado publicamente aos dados informados. As informações formam longas listas de estatísticas, entram para as tais estatísticas, compõem dados numéricos, não lhe comprometerão, a senhorita tem a minha palavra. E o recenseador, por dever de ofício, tal como o padre, guarda sigilo da pessoa de seus entrevistados, não os compromete, não os identifica. Fique, portanto, inteiramente segura e tranquila.

                   Escarlate como um pimentão e mirando os próprios pés, Remédios balbuciou, quase que a sussurrar:

                   − Prejudicada.

                   − Desculpe? – disse Nonato, apurando o ouvido.

                   − Prejudicada, Senhor Nonato.

                   − Prejudicada?!

                   − Sim! – respondeu Remédios, demonstrando tensão, mirando a porta da cozinha e com o indicador frente aos lábios.

                   − Mas como é isso, Dona Remédios? Prejudicada? Tal estado civil, respeitosamente, não existe. Não consta de nossa legislação civil. A senhorita, por certo, é solteira. Se não for, então não é senhorita, é senhora. Não sendo solteira, ou é casada ou viúva. Ah! É claro! Pode, ainda, não é muito comum, mas acontece, ser desquitada.

                   − Pois meu estado civil, Senhor Nonato, é prejudicada. É o que sou. Vou lhe narrar minha triste história, confiando em seu cavalheirismo e em sua total discrição.

                   Respirou fundo, munindo-se de coragem, e principiou a narrativa.

                   − Há algum tempo, inexperiente e ingênua que era, me deixei levar pela lábia de certo cabra safado, vivaldino, galanteador e sedutor. Pois o cabra me envolveu com seu bico doce, com suas histórias e promessas de amor e de casamento, com semelhante ardor que, igual, eu jamais vira. Tomada de intensa paixão e confiando plenamente em suas promessas de compromisso sério, terminei por me entregar. Ah, meu amigo. Grande foi a minha estupidez! Se arrependimento matasse... Pouco depois o sedutor, alegando negócios no Maranhão, viajou e fugiu. Nunca mais apareceu ou escreveu.

                   − Seu pai não o obrigou a reparar a falta, Dona Remédios?

                   − Meu pai desconhece a minha desgraça. Se tomar ciência, me coloca porta afora, com certeza. Tenho um noivo, Senhor Nonato, o Tibúrcio. Já noivamos há quase cinco anos. Tibúrcio deseja casar, mas eu vou enrolando, ganhando tempo. Se casar, tomando ciência de que não sou mais moça, Tibúrcio me devolve a meu pai e anula o casório. E papai me expulsa de casa. Se revelar a ele minha história, seguramente me rejeitará. Se me entregar a Tibúrcio ele, de qualquer forma, verificará que não sou mais moça, e me rejeitará. E mesmo assim, se não se aperceber de minha situação, de qualquer maneira, não aceitará mais me desposar: depois de me usar, sairá a procurar moça virgem pra casar.

                   Suspirou fundo.

                   − E essa é minha triste história, Senhor Nonato. Minha desgraçada história. Sou noiva eterna. Fiquei pro caritó. Meu estado civil, portanto, é o mesmo de outras pobres jovens mundo afora. Somos prejudicadas! – lamentou a desditosa Remédios.

                   − O senhor é servido de uma chávena de chocolate?

                   − Por favor, Dona Remédios.

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