PREJUDICADA
A. C. Dib
Corre a história em Teresina, na primeira metade do Século XX. Rogo ao leitor alguma paciência e certa compreensão. O texto não deve ser lido pela óptica do homem do Século XXI, eis que a cultura – provinciana – que o governa é aquela reinante no início do passado século – altamente machista e preconceituosa, portanto. Assim, espero não ser julgado: apenas relato os fatos – reais −, retratando o pensamento imperante naqueles idos longínquos.
O Estado Novo promovia, então, censo demográfico nacional, coletando, casa a casa, bairro a bairro, município a município, dados estatísticos de nossa população, como número de homens, de mulheres, de crianças e idosos, onde e como viviam os brasileiros, profissão, renda, condições sanitárias e de saúde e outros valiosos dados numéricos.
A jovem Maria dos Remédios, solteira e residindo com os pais, prendada e hospitaleira que era – além de inteirada do profissionalismo, da seriedade e da boa compleição física do jovem entrevistador – decidiu homenagear o ilustre e importante visitante.
Costumava, todas as tardes, preparar esmerado lanchinho para os pais, para si e para os habituais frequentadores de seu lar. Naquele dia, porém, segura de que, pela sequência, a próxima casa visitada pelo recenseador seria a sua, esmerou-se ainda mais no preparo da merendinha vespertina.
Forrou a mesa de jantar com a melhor toalha da casa, que era de linho, bordada e originária da Ilha da Madeira, adornando-a com a melhor porcelana – inglesa – de seus genitores, usada, exclusivamente, nas mais seletas situações sociais, e desencaixou do estojo de madeira a prataria espanhola.
Serviu pudim de laranja – chamado, no velho Piauí, de creme de laranja −, doce de buriti (do tradicional caixotinho, feito de talas da palmeira), além da suculenta sebereba de buriti (tomada líquida, com ou sem farinha), aluá, refresco de tamarindo, leite quente (com o bico da leiteira protegido por abafador), chá de capim cidreira, chocolate quente, arroz-de-leite (dito, também, arroz-doce), bolo frito (feito de tapioca), cuscuz de milho e cuscuz de arroz, goiabada, compota de caju, siricaia, banana frita (generosamente polvilhada com açúcar e canela) e a irresistível rosca salgada. Para arrematar, serviria licor de jenipapo, em delicados cálices de cristal da Boêmia, que faziam jogo com a licoreira.
Grande foi a surpresa do recenseador − senhor Nonato, assim o chamavam − ao se deparar com tão bela e tentadora mesa, e com o inusitado convite da anfitriã e de sua mãe para que ele as honrasse, acompanhando-as no lanchinho. Rapaz sistemático, senhor Nonato, a princípio, a pretexto de que estava a trabalho, buscou resistir, mas, frente à insistência e à simpatia de Remédios, terminou por dar ouvidos ao sofrido estômago que àquela altura da tarde já se punha a roncar.
Peremptoriamente, no entanto, não cedeu à proposta de interromper a entrevista para lanchar. Perdendo-se pela gula, um pouco atrapalhado com xícara, prancheta, colheres e com seus formulários e demais alfarrábios, ia, a um só tempo, mastigando e indagando, devorando e questionando. E lá ia o entrevistador, lançando ao ar suas perguntas e alguns grãos de farelo.
Encontravam-se, nesse momento, ambos sozinhos à mesa, já que o pai de Remédios ainda não havia regressado da labuta e sua mãe estava, juntamente com a empregada, a promover pequenas diligências na cozinha.
− Nome completo, por favor – falou Senhor Nonato, de boca cheia.
− Maria dos Remédios Beltrão Gouveia.
− Data de nascimento?
− Essa não é de bom tom, Senhor Nonato. Essa pergunta eu pulo.
− Pois que seja. Vamos, pelo momento, omitir essa informação. A senhorita trabalha?
− Faço o Normal e ajudo mainha aqui na lida.
− Estado civil?
Nesse momento, Remédios enrubesceu.
Frente à hesitação da moça, Senhor Nonato interrompeu a merenda, pigarreou, mirou-a e repetiu o questionamento.
− Estado civil, Dona Remédios? – disse, caneta tinteiro em riste, suspensa sobre o papel.
Remédios baixou a vista, revelando constrangimento. Timidamente, olhou em volta certificando-se de que não havia mais ninguém na sala além do Senhor Nonato.
− Guardamos rigoroso sigilo das informações coletadas, Dona Remédios! – disse Nonato, apercebendo-se da dificuldade de sua entrevistada. – Seu nome não será associado publicamente aos dados informados. As informações formam longas listas de estatísticas, entram para as tais estatísticas, compõem dados numéricos, não lhe comprometerão, a senhorita tem a minha palavra. E o recenseador, por dever de ofício, tal como o padre, guarda sigilo da pessoa de seus entrevistados, não os compromete, não os identifica. Fique, portanto, inteiramente segura e tranquila.
Escarlate como um pimentão e mirando os próprios pés, Remédios balbuciou, quase que a sussurrar:
− Prejudicada.
− Desculpe? – disse Nonato, apurando o ouvido.
− Prejudicada, Senhor Nonato.
− Prejudicada?!
− Sim! – respondeu Remédios, demonstrando tensão, mirando a porta da cozinha e com o indicador frente aos lábios.
− Mas como é isso, Dona Remédios? Prejudicada? Tal estado civil, respeitosamente, não existe. Não consta de nossa legislação civil. A senhorita, por certo, é solteira. Se não for, então não é senhorita, é senhora. Não sendo solteira, ou é casada ou viúva. Ah! É claro! Pode, ainda, não é muito comum, mas acontece, ser desquitada.
− Pois meu estado civil, Senhor Nonato, é prejudicada. É o que sou. Vou lhe narrar minha triste história, confiando em seu cavalheirismo e em sua total discrição.
Respirou fundo, munindo-se de coragem, e principiou a narrativa.
− Há algum tempo, inexperiente e ingênua que era, me deixei levar pela lábia de certo cabra safado, vivaldino, galanteador e sedutor. Pois o cabra me envolveu com seu bico doce, com suas histórias e promessas de amor e de casamento, com semelhante ardor que, igual, eu jamais vira. Tomada de intensa paixão e confiando plenamente em suas promessas de compromisso sério, terminei por me entregar. Ah, meu amigo. Grande foi a minha estupidez! Se arrependimento matasse... Pouco depois o sedutor, alegando negócios no Maranhão, viajou e fugiu. Nunca mais apareceu ou escreveu.
− Seu pai não o obrigou a reparar a falta, Dona Remédios?
− Meu pai desconhece a minha desgraça. Se tomar ciência, me coloca porta afora, com certeza. Tenho um noivo, Senhor Nonato, o Tibúrcio. Já noivamos há quase cinco anos. Tibúrcio deseja casar, mas eu vou enrolando, ganhando tempo. Se casar, tomando ciência de que não sou mais moça, Tibúrcio me devolve a meu pai e anula o casório. E papai me expulsa de casa. Se revelar a ele minha história, seguramente me rejeitará. Se me entregar a Tibúrcio ele, de qualquer forma, verificará que não sou mais moça, e me rejeitará. E mesmo assim, se não se aperceber de minha situação, de qualquer maneira, não aceitará mais me desposar: depois de me usar, sairá a procurar moça virgem pra casar.
Suspirou fundo.
− E essa é minha triste história, Senhor Nonato. Minha desgraçada história. Sou noiva eterna. Fiquei pro caritó. Meu estado civil, portanto, é o mesmo de outras pobres jovens mundo afora. Somos prejudicadas! – lamentou a desditosa Remédios.
− O senhor é servido de uma chávena de chocolate?
− Por favor, Dona Remédios.
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