RIO — Sebastião da Costa virou Grande Otelo em 1932, ano em que a Revolução Constitucionalista cindiu o país. Quando Chico Anysio estreava “Chico City”, em 1973, o Brasil vivia os Anos de Chumbo. Em 1984, enquanto o povo exigia eleições diretas, saía o primeiro “Planeta Diário”, jornal que foi embrião do grupo “Casseta & Planeta”. Em 2018, na eleição bipolar que implodiu famílias, uma profusão de memes ofereceu alívio cômico.
Parece piada, e é: o brasileiro apela para o chiste mesmo (ou principalmente) nos momentos mais tensos de sua História. Dois exemplos recentes: a chuva de memes gerados ainda no primeiro tempo de Alemanha 7 x 1 Brasil, em 2014, e a hashtag #FicaTemer que, diante da polarização política, brinca com o desejo de manter o impopular presidente no poder com frases como “eu vou morrer de saudade do meu vampirinho preferido! #FicaTemer”.
— O humor é parte da alma brasileira. Sempre tivemos de lidar com bruscas mudanças de rumo. É aí que entra o humor: nos permite encarar o que não conseguimos consertar — diz o cineasta Álvaro Campos, codiretor de“Tá rindo de quê?” e “Rindo à toa”, documentários em cartaz no Festival do Rio (ambos têm sessões sábado e domingo).
O discurso é uma deixa para André Gardel, professor de Teoria do Teatro da Unirio e especialista em comédias clássicas. Segundo Gardel, nossa tendência à avacalhação está ligada a uma piada interna e coletiva: a tal identidade nacional:
— O que chamamos de “brasileiro” não pode transformar a diferença e o outro em inimigo mortal. Pelo contrário: tem que pensar a vida como trânsito feliz entre múltiplas perspectivas.
— Embora falte consciência política no Brasil, a piada é uma forma de aumentar o debate — observa Marcelo Adnet, ele próprio uma figura que marcou essas eleições com as imitações dos políticos no “Tutorial dos candidatos”, série no site do GLOBO.
Contribuindo para o debate, os dois documentários em cartaz analisam momentos complementares da comédia no Brasil. “Tá rindo de quê?” foca na ditadura e nos artistas que usaram seu talento como forma de resistência — ou válvula de escape. A lista é ilustre: Millôr Fernandes, a trupe do “Pasquim” até os televisivos Chico Anysio, Jô Soares e Os Trapalhões.
Já “Rindo à toa” remete ao período seguinte. Na redemocratização, como diz o cartunista e roteirista Cláudio Paiva em seu depoimento, “ninguém queria ser tachado de censor”. Assim, programas como “TV Pirata” e “Casseta & Planeta” chegam à TV aberta com piadas que pouco antes eram inimagináveis.
Hoje, com a facilidade para veiculação na internet somada à incessante discussão sobre limite do humor, criou-se um terceiro momento, afirma o casseta Claudio Manoel — que dirige os dois filmes ao lado de Campos e Alê Braga:
— Todo mundo tem poder midiático hoje, e o feedback passou a ser instantâneo, o que é uma conquista. Não adianta ficar olhando para trás, quando podia fazer piadas escrotas.
O humorista Fábio Porchat faz coro:
— Quando você contava uma piada, dez pessoas riam e dez não gostavam. Na internet, tem três mil que dão like e três mil que dão dislike — diz Porchat, um dos sócios do canal Porta dos Fundos, que fez vídeos tirando sarro de temas das últimas eleições, como as fake news.