20 de fevereiro de 2021 | 05h00
O tempo não anda lá muito propício para a sutileza, mas de vez em quando o cinema vem nos relembrar essa dimensão um tanto esquecida da experiência humana. É o caso de Perfil de Uma Mulher, de Kôji Fukuda, em cartaz nos cinemas.
Antes de falar sobre o filme propriamente dito, queria lembrar de um comentário de Roland Barthes sobre as diferenças entre a cultura ocidental e a oriental, baseando-se no simples uso dos artefatos para alimentação. Com o garfo e a faca, os ocidentais espetam, cortam e despedaçam o alimento. Comer é um ato de violência. Os orientais se utilizam dos hashi, os populares “palitinhos”, com os quais separam, agregam ou misturam os alimentos antes de levá-los à boca. Comer é um ato gentil. Desse modo, a sutileza oriental expressa-se nos hábitos de alimentação, mas é algo presente no conjunto das atitudes sociais. É um ethos. Uma mentalidade.
Ishiko (Mariko Tsutsui) é uma cuidadora de idosos. Trabalha numa casa, cuja matriarca é acometida de um câncer em fase terminal. Essa senhora é uma pintora, informação que tem um valor adicional para o espectador. Além de cuidar da anciã, Ishiko dá aulas complementares a suas duas netas. Tudo nela respira dedicação e competência.
Há um momento, em aparência inócuo, quando, numa lanchonete, Ishiko apresenta um sobrinho às duas meninas. O que se segue, é uma tempestade perfeita, com um crime cometido, repercussões policiais, familiares e sociais. Ishiko, que não tem nada a ver com a história, ou, em todo caso, pouco a ver, sofrerá consequências bastante pesadas quando aflora o outro lado dessa civilização da delicadeza e dos gestos elegantes.
Perfil de Uma Mulher é, assim, um estudo de caso sobre como a culpa pode se transferir sobre uma pessoa inocente. Lembremos, é um tema obsessivo de Hitchcock, um católico atormentado pelo pecado original. Não importa muito que Ishiko nada tenha a ver objetivamente com qualquer crime, que seja uma pessoa não apenas inocente, como gentil e prestativa. A culpa respinga sobre ela e não há nada a fazer uma vez que a sociedade tenha decretado que ela tem parte da responsabilidade.
O filme é construído de forma oblíqua. Flutua entre dois tempos. No presente, quando a personagem sofre com o isolamento. No passado, quando encontra-se em plena atividade e parece ter um futuro cheio de perspectivas interessantes.
Há também divagações, quando novas camadas de significado vão sendo depositadas, da mesma maneira que um pintor adiciona tinta sobre tinta para obter o efeito desejado. Por exemplo, quando Ishiko e uma das meninas da família, Motoko (Mikoko Ichikawa), trocam confidências durante um passeio pelo zoológico. É então que temas como a sexualidade afloram e dão novo contorno à história e às relações entre os personagens.
Além da condenação social, da sexualidade reprimida e do machismo estrutural, Perfil de Uma Mulher aborda também o tema da imprensa sensacionalista, ávida por escândalos. Na verdade, são temas entrelaçados entre si, como engrenagens que funcionam apenas quando conectadas. O desafio civilizatório seria desfazer os elos entre preconceitos, machismo, sexo visto como pecado, o prazer voyeurista com a desgraça alheia. Essas peças, funcionando em conjunto, destroem vidas.