PELEJA DE ZÉ MOLESTA COM TIO SAM
Ferreira Gullar
Esta é a história fiel
da luta que Zé Molesta
pelejou com Tio Sam,
que começando de noite
foi acabar de manhã
numa disputa infernal
que estremeceu céus e terra:
quase o Brasil vai à guerra
e o mundo inteiro à terceira
conflagração mundial.
Zé Molesta é um Zé franzino
nascido no Ceará
mas cantador como ele
no mundo inteiro não há.
Com seis anos sua fama
corria pelo Pará;
com oito ganhava um prêmio
de cantador no Amapá;
com nove ensinava grilo
a cantar dó-ré-mi-fá;
com dez fazia um baiano
desconhecer vatapá.
Assim fez sua carreira
de cantador sem rival
vencendo poeta de feira
de renome nacional.
Venceu Otacílio e Dimas,
Apolônio e Pascoal
rindo e brincando com as rimas
numa tal exibição,
cavalgando no “galope”
da beira-mar ao sertão,
soletrando o abecedário,
montando no adversário
quadrando quadra e quadrão.
Foi então que ouviu falar
desse tal de Tio Sam.
‘Tio de quem?” perguntou –
“Só se for de tua irmã!
O único tio que eu tive
salguei como jaçanã.”
Mas lhe disseram que o velho
era pior que Satã.
“Vamo nos topar pra ver
quem rompe vivo a manhã.”
Assim falou Zé Molesta
e mandou logo avisar
a Tio Sam que ficasse
preparado pra apanhar.
“Marque lugar, marque hora,
que eu canto em qualquer lugar.
Só quero que o mundo inteiro
possa a luta acompanhar
por rádio e televisão
e através do Telstar.”
Lançado o seu desafio
Zé Molesta se cuidou.
Correu depressa pro Rio
e aqui se preparou.
Falou com Vieira Pinto,
Nelson Werneck escutou
e nos Cadernos do Povo
durante um mês estudou.
“O resto sei por mim mesmo
que a miséria me ensinou.”
Enfim foi chegado o dia
da disputa mundial.
Na cidade de New York
fazia um frio infernal.
No edifício da ONU
foi preparado o local.
Zé Molesta entrou em cena
foi saudando o pessoal:
“Viva a amizade dos povos,
Viva a paz universal!”
Tio Sam também chegou
todo de fraque e cartola.
Virou-se pra Zé Molesta
e lhe disse: “Tome um dólar,
que brasileiro só presta
para receber esmola.
Está acabada a disputa,
meta no saco a viola”.
Zé Molesta olhou pra ele,
lhe disse: “Não quero não.
Não vim lhe pedir dinheiro
mas lhe dar uma lição.
Não pense que com seu dólar
compra minha opinião,
que eu não me chamo Lacerda
nem vivo de exploração”.
Tio Sam ficou sem jeito,
guardou o dólar outra vez.
Respondeu: “Esse sujeito
já se mostra descortês.
Já me faltou com o respeito
logo na primeira vez.
Vê-se logo que ele é filho
de negro e de português”.
“Não venha com essa conversa
de preconceito racial
- lhe respondeu Zé Molesta –
que isso é conversa boçal.
Na minha terra se sabe
que todo homem é igual,
seja preto seja branco,
da França ou do Senegal.
Antes um preto distinto
do que um rico sem moral.”
Tio Sam ficou danado
com a resposta de Molesta:
“Me dá dois dedos de uísque
que eu vou acabar com a festa.
Quem nasce naquelas bandas
já se sabe que não presta,
se não se vende pra nós
morre de fome e moléstia.
Se esse caboclo se atreve
meto-lhe um tiro na testa.
Não gosto de discutir
com negro metido a besta”.
“Mas não se zangue, meu velho
- respondeu-lhe Zé Molesta –
que agora que eu comecei.
Não vim pra brigar de tiro
mas pra dizer o que sei.
Na minha terra de fato
morre-se muito de fome
mas o arroz que plantamos
é você mesmo quem come,
a riqueza que criamos
você mesmo é quem consome.”
Tio Sam disse: “Esta é boa!
Vocês são ingratalhões.
Vivo ajudando a vocês,
emprestando-lhes milhões,
e me vem você agora
dizer que somos ladrões.
Felizmente ainda existem
alguns brasileiros bons
como o Eugênio Gudin
e o Gouveia de Bulhões”.
Molesta deu uma risada:
“Discuta de boa fé.
Se você é tio deles,
meu tio você não é.
Explique então direitinho
o negócio do café”.
Tio Sam desconversou
mas Zé Molesta insistiu:
“Por que é que nosso café
de preço diminuiu?
Quanto mais café mandamos
recebemos menos dólar
e ainda vem você dizer
que vive nos dando esmola!
Você empresta uma parte
do que é nosso e a outra parte
você guarda na sacola”.
“Não fale assim – disse o velho –
que eu sempre fui seu amigo.
Mando a vocês todo ano
mil toneladas de trigo
e em troca nada lhes peço.
Criei os Corpos da Paz
e a Aliança para o Progresso.”
“Sei de tudo muito bem
mas você não nos engana.
Não pense que sou macaco
pra me entreter com banana.
O trigo que você fala
é o que fica armazenado
para que não baixe o preço
do seu trigo no mercado.
Você diz que dá de graça
mas nós pagamos dobrado.
É com ele que você paga
despesas do consulado
e da embaixada, enquanto
seu dólar fica guardado.
“É com ele que você compra
a opinião dos jornais
pra que eles enganem o povo
com notícias imorais,
pra que não digam a verdade
sobre esses Corpos da Paz
que na frente nos sorriem
e nos enganam por trás.”
Tio Sam disse a Molesta:
“Chega de conversação.
A moléstia que te ataca
já matou muito ladrão.
Você quer roubar meu ouro
e dividir meu milhão.
Comunista em minha terra
eu mando é para a prisão”.
“Ora veja, minha gente,
como esse velho é safado!
Apela pra ignorância
quando se vê derrotado.
Não quer que eu diga a verdade
sobre meu povo explorado.
Quer me mandar pra cadeia
quando ele é o culpado.”
“Vocês são todos bandidos,
chefiados por Fidel
- disse Tio Sam bufando,
da boca vertendo fel -
Querem transformar o mundo
num gigantesco quartel,
pondo os povos sob as botas
da ditadura cruel.”
“Essa conversa velhaca
não me faz baixar a crista
- disse Molesta – Me diga
quem foi que apoiou Batista?
Você deu arma e dinheiro
a esse ditador cruel
que assassinava, roubava
e torturava a granel.
Por que era amigo dele
e agora é contra Fidel?
“Você diz que é contra Cuba
porque é contra ditadura.
Será que na Nicarágua
há democracia pura?
Se você luta no mundo
pra a liberdade instalar
por que é amigo de Franco,
de Stroessner e de Salazar?
A verdade é muito simples
e eu vou logo lhe contar.
Você não quer liberdade,
você deseja é lucrar.
Você faz qualquer negócio
desde que possa ganhar:
vende canhões a Somoza,
aviões a Salazar,
arma a Alemanha e Formosa
pro mercado assegurar.”
Nessa altura Tio Sam
já perdera o rebolado.
Gritou: “Chega de conversa,
que estou desmoralizado!
Desliguem a televisão,
deixem o circuito cortado.
Mobilizem os fuzileiros,
quero esse ‘cabra’ amarrado.
Vamos lhe cortar a língua
pra ele ficar calado”.
“Eta que a coisa tá preta!
- disse pra si Zé Molesta –
Como estou na casa dele,
é ele o dono da festa.
Tenho que agir com cuidado
pra ver se me escapo desta.”
E foi um deus-nos-acuda,
barafunda, corre-corre.
Molesta pulou de lado.
“Quem não for ligeiro morre.
Pra me entregar pra polícia
só mesmo estando de porre.”
Pulou por cima das mesas,
por debaixo das cadeiras.
Deu de frente com dois guardas,
passou-lhes duas rasteiras.
Gritou: “Abre, minha gente,
que eu vou jogar capoeira!”
Abriu-se um claro na sala,
dividiu-se a multidão.
Rolou gente, rolou mesa,
rolou guarda pelo chão.
Em dois tempos Zé Molesta
sumira na confusão.