RENATO SOUZA
LUÍS CALCAGNO
Publicação: 18/10/2019 04:00
Supremo analisa ações movidas pela OAB e pelos partidos Patriota e PCdoB. Julgamento começou ontem, mas resultado só sai na próxima semana
|
Em memorial encaminhado aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a Procuradoria-Geral da República (PGR) afirma que derrubar a possibilidade de prisão de réus após a condenação em segunda instância, que começou a ser julgada ontem, representaria um “triplo retrocesso” no sistema jurídico, que atingiria, inclusive, a credibilidade depositada pela sociedade brasileira na Corte. O documento é assinado pelo vice-procurador-geral da República, José Bonifácio de Andrada, que deve falar em nome do Ministério Público Federal (MPF) na sessão do STF da próxima quarta-feira.
De acordo com a Procuradoria, mudar a atual jurisprudência do tribunal — que permite a prisão após condenação em segunda instância — seria um retrocesso para o sistema de precedentes do Judiciário, que perderia “em estabilidade e segurança jurídica e teria sua seriedade posta em xeque”. A mudança seria prejudicial também “para a persecução penal no país, que voltaria ao cenário do passado e teria sua efetividade ameaçada por processos infindáveis”, recursos protelatórios e “penas massivamente prescritas”. Por fim, seria ruim “para a própria credibilidade da sociedade na Justiça e na Suprema Corte, como resultado da restauração da sensação de impunidade”, sustenta a PGR.
Código
No julgamento iniciado ontem, os 11 ministros da Corte analisam três ações diretas de constitucionalidade que contestam a prisão em segunda instância. Elas pedem a validação do artigo 285 do Código de Processo Penal, que afirma que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
As ações foram apresentadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelos partidos Patriota e PCdoB. Ao abrir a sessão, o presidente do Tribunal, ministro Dias Toffoli, tentou amenizar a polêmica criada em torno do caso. Sem citar diretamente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — um dos que poderão ser beneficiados pela eventual mudança no entendimento do Supremo — Toffoli declarou que o julgamento não tem como objetivo afetar “nenhuma situação particular”.
Na sessão de ontem, falaram advogados das instituições que entraram com as ações e representantes de entidades que se declararam e foram aceitas pelo tribunal como interessadas no tema. Na próxima semana, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Advocacia-Geral da União (AGU) devem se manifestar no plenário, e, por fim os ministros revelarão seus votos.
Encarceramento
O advogado Héracles Marconi, que representa o Patriota, destacou que a legenda, que defendia o encarceramento apenas depois de examinados todos os recursos possíveis, mudou de opinião e, agora, entende que a prisão em segunda instância é um mecanismo para combater a criminalidade. “Na ação penal nº 470 (processo do mensalão) houve um único grau de jurisprudência. Na Lava-Jato, houve um duplo grau. Uma pessoa, da qual não vou falar o nome, foi condenada e está presa. Houve a quebra de um paradigma. É preciso ter uma resposta satisfatória desta Corte aos anseios da sociedade”, disse.
Atuando pelo Conectas, organização que luta pela proteção aos direitos humanos, a advogada Silvia Souza, expressou visão contrária, afirmando que a prisão antes do fim do processo prejudica as pessoas mais pobres e, principalmente, as de pele negra. “Um debate tão sério quanto a relativização da presunção de inocência tem sido pautado como se afetasse apenas os condenados de colarinho-branco, quando, na verdade, nós sabemos muito bem que o aparato penal do Estado se endereça aos pretos, pobres e periféricos”, sustentou.
O advogado Juliano Breda, da OAB, afirmou que o Código de Processo Penal recebeu a chancela do Poder Legislativo, a quem pertence a atribuição de criar leis e regulamentar os artigos da Carta Magna. “O entendimento da OAB é no sentido de reafirmação da Constituição, da independência e da liberdade do poder Legislativo”, disse.
Tuíte incômodo
Uma mensagem postada em uma rede social do presidente Jair Bolsonaro ajudou a aumentar a tensão no julgamento do STF sobre as prisões em segunda instância. “Aos que questionam, sempre deixamos clara nossa posição favorável em relação à prisão em segunda instância. Proposta de emenda à Constituição que se encontra no Congresso Nacional sob relatoria da deputada federal Carol de Toni”, dizia um post publicado no Twitter do presidente. Tempos depois, o conteúdo foi apagado. Filho do presidente, o vereador carioca Carlos Bolsonaro assumiu a autoria da mensagem. “Eu escrevi o tweet sobre segunda instância sem autorização do presidente. Me desculpem todos! A intenção jamais foi atacar ninguém! Apenas expor o que acontece na Casa Legislativa!”, afirmou.
Análise da notícia
Se eles tiverem razão, o mundo está errado
» Plácido Fernandes Vieira
Há uma gritante contradição entre o notório saber jurídico de meia dúzia de ministros ditos garantistas do STF e de juristas de, praticamente, todo o planeta. Um exemplo disso, citado pelo fórum que reúne juízes criminais brasileiros, são os 153 países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU). Em todos eles, alertaram os magistrados em nota, condenados cumprem pena após condenação em primeira ou segunda instância. O problema, dirão alguns, é que a Constituição Federal, no inciso LVII do artigo 5º, estabelece que a presunção de inocência de um réu só acaba quando esgotado o último recurso no Supremo. No mesmo artigo 5º, mais adiante, o inciso que trata especificamente de prisão, o LXI, aponta em sentido oposto ao que entendem as sumidades. Vamos aos fatos.
Basta saber ler para compreender o que diz o inciso LXI: “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Simplificando: só se pode prender uma pessoa no caso de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de uma juíza ou juiz. Prestem bem atenção: não fala em esperar recurso ao STF para determinar a prisão. Agora, voltando ao “entendimento” dos supremos garantistas: que trecho da Constituição estabeleceria a presunção de inocência até o último recurso no STF? Eles alegam que está no inciso LVII. Será?
Vejam o que dispõe o inciso LVII: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Para os tais garantistas estarem certos, o inciso LXI teria de ser declarado inconstitucional. Mas o fato é que eles estão errados. Não há contradição na Constituição. Como assim? Explico: é que nem o STJ nem o STF julgam crimes cometidos por pessoas sem foro privilegiado. Logo, o trânsito em julgado de ações penais desse tipo de réu se esgotam na segunda instância. É assim no mundo inteiro. Em todos os países da ONU. E é isso que está na nossa Constituição. E no Brasil sempre foi assim, com exceção de um breve momento, entre 2009 e 2016, em que sinto até vergonha de contar. Mas vamos à história.
Dez anos atrás, o STF mudou a jurisprudência ao analisar o caso de um fazendeiro rico que deu cinco tiros num homem que, supostamente, estava “cantando” a mulher dele, no meio de um evento agropecuário no interior de Minas. Resultado: o fazendeiro ficou impune. O período de “exceção jurídica”, felizmente, durou pouco. Em 2016, o então ministro Teori Zavascki explicitou o absurdo da situação e convenceu colegas do STF a reconduzirem o Brasil ao rol dos países civilizados. Mas, no meio do caminho, condenaram e prenderam Lula... Sim, é isso: nessa celeuma toda não existe nenhuma sapiência jurídica inalcançável a reles mortais. O objetivo é um só: destruir a tal da Lava-Jato, aquela operação de combate ao crime que ousou prender bandidos de colarinho branco.