Racismo, pensamento africano contemporâneo, histórias de heroínas negras pouco contadas nas escolas e no dia a dia: os temas são abordados em uma boa leva de livros que acabam de desembarcar nas editoras. Para entender a importância de celebrar o mês da Consciência Negra, vale mergulhar na leitura de autores brasileiros que refletem sobre racismo, desigualdade, violência e discriminação sexual no cenário contemporâneo. O Diversão & Arte fez uma seleção que tem desde ensaios até ficção, incluindo um elegante livrinho de história escrito em forma de cordel sobre mulheres negras que fizeram a história do Brasil e sumiram dos livros e das narrativas.
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Jeferson Jeferson Tenório |
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Jarid Arraes |
O avesso da pele
De Jeferson Tenório. Companhia das Letras, 190 páginas. R$ 59,90
Terceiro romance do autor, um professor de literatura nascido no Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre, traz a história de um também professor de literatura, negro como Tenório, vítima de diversas abordagens racistas por parte da polícia e cuja vida acaba por ser tirada em um desses episódios. “Dos três livros que tenho, O avesso da pele foi o que se aproximou mais da minha vida, mas ele surge, na verdade, a partir de um livro que gosto bastante que é o Hamlet, a história de um filho que tem uma relação com um pai fantasma. Eu sempre quis escrever um livro sobre ausência paterna. E também queria falar sobre um professor de literatura. Depois de sofrer uma abordagem policial em Porto Alegre, em 2016, achei que podia abordar estes três temas: ausência paterna, violência policial e educação”, conta Tenório. Estruturado com várias vozes narrativas, o livro é conduzido pelo filho do professor. Ao mesmo tempo em que revisita a história do pai ausente, o narrador investiga sua própria origem. O racismo é tema constante — Tenório decidiu escrever o livro após a abordagem policial sem justificativa —, mas as relações familiares e a educação em um país marcado pela desigualdade social ocupam lugar importante na narrativa. O autor, que já esteve no programa Conversa com Bial, é também um dos convidados da edição on-line da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), programada para dezembro.
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Jarid Arraes |
A razão africana – Breve história do pensamento africano contemporâneo
De Muryatan S. Barbosa. Todavia, 214 páginas.
Filho de exilados políticos nascido na Suécia, batizado com nome tupi-guarani e professor da Universidade Federal do ABC, Muryatan S. Barbosa ficava incomodado com o grau de eurocentrismo no pensamento acadêmico brasileiro. A inquietação gerou A razão africana — Breve história do pensamento africano contemporâneo, ensaio que toma o leitor pela mão para entender quais são os pensadores mais relevantes na história recente da África. Muryatan tenta suprir uma lacuna que considera fruto de um olhar sempre voltado para o Norte do mundo. “É um tema recente. Temos duas coletâneas recentes sobre o assunto com autores brasileiros e africanos, de estudantes que estão no Brasil, e temos teses e dissertações. De 10 anos para cá, o tema tem adensado, mas não temos livros de análise geral como esse”, garante. A razão africana, no entanto, não é destinado a pesquisadores e consegue oferecer uma introdução aos não especialistas, uma espécie de visão geral sobre as diversas correntes de pensamento sobre os rumos da África hoje. Autodesenvolvimento, identidade africana, pan-africanismo, diversidade, autonomia, desenvolvimento, economia e até feminismo são alguns dos temas tratados.
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Muryatan |
Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis
De Jarid Arraes. Seguinte, 176 páginas. R$ 34,90
Já ouviu falar em Dandara, Aqualtune, Na Agontimé, Maria Felipa e Zacimba Gaba? Elas fazem parte da história do Brasil, mas foram apagadas dos livros escolares, por isso Jarid Arraes decidiu trazê-las de volta à narrativa, junto com outras 10 figuras pouco conhecidas. O formato cordel transporta as personagens para uma linguagem popular, mas tudo que é contado ali saiu de pesquisa histórica e se inscreve na formação da identidade brasileira. Algumas das personagens são mais conhecidas — caso de Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina —, mas a maioria permanece praticamente desconhecida. “Nas escolas não ouvimos/Essa história impressionante/Mas eu uso o meu cordel/Que também é importante/Para que você conheça/E não figure ignorante”, avisa Jarid, que é uma das finalistas do Prêmio Jabuti como livro de contos Redemoinho em dia quente. A autora conta que, antes de chegar à idade adulta, nunca ouvira falar de uma mulher negra protagonista de algum momento histórico. Foi depois de adulta e já dona de uma voz narrativa que mistura a linguagem do cordel e com uma postura pop, que Jarid passou a pesquisar a vida dessas mulheres. A intenção, além de escrever sobre elas, era resgatar as próprias origens. São, como ela diz, histórias que merecem ser contadas e podem ajudar a mudar a vida de muitas mulheres.
Quatro perguntas // Muryatan S. Barbosa
O que perdemos ao nos concentrar no
pensamento acadêmico eurocêntrico?
Não saberia te dar uma resposta simples sobre isso. Acho que quanto mais a gente amplia nossos horizontes, maior nossa capacidade de enxergar o mundo e a nós mesmos. Então, na medida em que a gente vê nossos problemas e soluções sempre somente a partir dessas poucas tradições intelectuais (França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos), necessariamente nos tornamos mais pobres do ponto de vista cultural e intelectual. Há muita semelhança do Brasil com outros países, África do Sul, Índia etc. Olhar para isto, por exemplo, enriqueceria nosso pensamento, não só acadêmico, mas cultural e político de uma forma muito relevante. O Brasil, hoje, é intelectualmente pobre, de um modo geral, e acho que parte desse fato deriva do nosso eurocentrismo, da nossa incapacidade de enxergar para além do que estamos acostumados a ver. É como ter um só óculos, às vezes até nosso grau de miopia aumenta, mas a gente só tem aqueles óculos.
Você também diz que isso tem mudado nos
últimos 10 anos. Por que mudou, na sua opinião?
A primeira razão foi a Lei nº 10.639 (2003), que delibera sobre a necessidade da inclusão da história e cultura africana e afro-americana nos currículos escolares. Isso impulsionou o estudo da história da África no Brasil. Não que não existisse antes. O Brasil tem uma história longa de estudos sobre a África, mas sempre na medida em que isso revelava nossa formação cultural. Nunca estudamos a África a partir da sua história intelectual, do que os intelectuais africanos e africanas pensam sobre a sua própria história. Isso demonstra muito do racismo à brasileira. Então, a lei foi um elemento importante de estruturação do campo da história da África. Outra razão foi a inclusão de estudantes negros e negras na academia: esses estudantes sentiram a necessidade de ver esta temática contemplada. Eles fizeram pressão por isso, o que tem fortalecido o campo e a ciência brasileira, em geral.
No livro, você explica que a descolonização é um processo de décadas e não apenas
centrado nas independências das nações africanas. Em que parte desse processo
estaríamos agora, com movimentos estourando no mundo inteiro, estátuas sendo
derrubadas e reivindicações de uma narrativa mais justa vindo à tona?
Creio que estamos mais numa dimensão cultural nesse processo. O Julius Nyerere, um grande pensador, dizia que a libertação tinha um significado cultural, político e econômico. E que ela não se faz só por rupturas, mas por um processo gradual em que esses três elementos estão interrelacionados. É uma percepção muito sagaz do dilema, não só da África, mas dos países periféricos, em geral. Não é um ato simples descolonizar-se, é um ato de múltiplas faces, processual e contraditório. Às vezes, um nível vai à frente e outro fica para trás. Mas é sempre importante para um país que pretende ter soberania, ter consciência desse caminho. Não deixar que os retrocessos sejam rupturas em relação ao caminho maior do que deveria ser o da autonomia, desenvolvimento, melhora da qualidade de vida.
Como seria essa dimensão cultural?
À medida em que o processo de descolonização política e econômica teve muitos retrocessos nos últimos 30 anos, sobretudo do ponto de vista econômico, a descolonização cultural tornou-se mais relevante. Percebe-se que, enquanto a gente tentar ser o outro, o outro dominante, no caso o ocidental, a gente nunca vai conseguir ser o que é. Essa obsessão pelo ocidentalismo exacerbado é algo que tem reflexos muito ruins para as sociedades periféricas, o Brasil que o diga. É uma tara, uma obsessão em ser o que não somos, e isso só pode levar ao racismo, à reprodução da discriminação, da falta de solidariedade, a tudo de ruim. E acho que isso é mais evidente hoje e, portanto, é mais evidente também o papel que a cultura pode ter nesse processo de descolonização, que não acabou.