Extremamente oportuno o lançamento do filme de Walter Salles Ainda estou aqui, drama biográfico centrado na obra de Marcelo Rubens Paiva. Chega no momento certo. Narra a história da prisão — e desaparecimento —, em 1971, do engenheiro civil e político brasileiro Rubens Paiva e da luta corajosa de sua viúva, Eunice Paiva, por respostas. Frente ao sinistro desaparecimento, Eunice Paiva viu-se obrigada a reinventar-se: munindo-se de dignidade e determinação ímpar, reuniu os cinco filhos (que terminou por criar sozinha), deixou o Rio de Janeiro transferindo-se para São Paulo, retornou aos bancos escolares bacharelando-se em Direito (contando, então, 47 anos) e consagrou-se como expert em direitos humanos e causas indígenas. O filme revela que sua tragédia foi ainda pior do que, medianamente, conhecemos: depois da prisão de Paiva, também ela e sua filhinha de 15 anos foram levadas ao DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita, Rio de Janeiro, por militares à paisana, com direito a capuz preto encobrindo a cabeça, permanecendo Eunice detida por doze dias, submetida a interrogatórios (a criança foi solta 24 horas depois, devidamente fichada). O filme rendeu a Fernanda Torres, que interpreta — magistralmente — Eunice, o Globo de Ouro 2025 de Melhor Atriz, concedido pela Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood, em Los Angeles.
Abordando, ainda que de forma velada e em microescala, os horrores perpetrados pela ditadura militar brasileira, o filme foi lançado em momento delicado — mas, altamente oportuno, vale frisar —, no qual democracias mundo a fora se acham contestadas e sob ameaça, fenômeno político sem igual desde a Segunda Grande Guerra.
Também o Brasil, nos dias presentes, surfa, preocupantemente, na onda do flerte antidemocrático. Legiões de brasileiros mostram-se desencantados da democracia e de seus valores. Sustentam que a adoção de um “regime de força” seria o mais adequado ao enfrentamento e solução dos problemas nacionais, eis que o governante não enfrentaria amarras, teria, sim, as mãos livres para colocar em marcha as medidas necessárias, ainda que amargas. Manifestam, igualmente, desconfiança da política partidária, “corrupta e interesseira” dizem, enquanto o sonhado regime ditatorial irradiaria patriotismo, altruísmo e devoção integral às causas nacionais. Sustentam que o liberalismo democrático constituiria ameaça a valores da família cristã brasileira, defendendo, como meio de dissipar tais ameaças, a adoção de ditadura fundamentalista cristã (algo parecido com a teocracia iraniana). Interpretam, com grande malícia ideológica, o Artigo 142 da Carta Constitucional, nele vislumbrando o papel “clássico” de poder moderador para as Forças Armadas na República. Julgam que o golpe de estado para implantar a tal ditadura constituiria meio eficaz de afastar o “perigo vermelho”, que estaria a ameaçar-nos. Animados por teorias da conspiração, fakenews e discursos de ódio e intolerância, alguns membros desse grupo chegam, mesmo, ao ponto de aplaudir atos de terrorismo homicida (felizmente abortados, por circunstâncias alheias à vontade de seus agentes), como meio de conquista de seus objetivos.
Tenho recebido mensagens, que circulam pela internet, enaltecendo os feitos do ciclo militar. Apologia de crimes contra a ordem constitucional democrática, com clamores por golpe de estado e por implantação de ditadura, livremente circulavam nas redes sociais (agora devidamente coibidas tais práticas liberticidas e que constituem crime de fazer apologia de crimes – Artigo 287 do Código Penal brasileiro). Textos sugerem que, em comparação com as ditaduras argentina e chilena (campeãs de homicídios), a nossa não seria uma ditadura, mas sim autêntica “ditamole”. Cheguei a ouvir que, em verdade, não tivemos uma ditadura propriamente dita, sendo, de fato, uma “democracia à brasileira”.
Ainda estou aqui, oportunamente, deixa no ar a questão: o que fazer quando seus sequestradores, agressores e assassinos são os próprios agentes do Estado? A quem apelar? Para quem recorrer em semelhante contexto? Como se defender, defender a vida, a integridade física, o bom nome e o patrimônio quando os direitos, garantias e salvaguardas próprios das constituições democráticas — direito à ampla defesa, direito ao contraditório e ao devido processo legal, direito ao habeas corpus, direito a um Poder Judiciário soberano e independente e outros tantos sagrados direitos — já não mais existem? Como resistir à opressão de um Estado leviatã quando a imprensa se acha amordaçada, os advogados impedidos de atuar, a verdade ocultada e a mentira oficializada e o sequestro, a tortura, o homicídio e o exílio se convertem em política governamental? Como atuar em um regime que tripudia de direitos humanos e sujeita indefesos cidadãos fragilizados — quando colocados sob suspeição — à mais abjeta condição de degradação humana? O que fazer quando a mera expressão de um pensamento pode lhe render prisão, tortura, morte ou inapelável exílio? O que fazer quando a residência — asilo inviolável do cidadão — resta maculada por tipos armados e carrancudos que o arrancam de casa na calada da noite e desaparecem contigo? Em tais condições, o deputado Rubens Paiva, suspeito de colaborar com o terrorismo, provavelmente, morreu sob tortura e, provavelmente, teve seu corpo enterrado clandestinamente ou lançado nas águas da Baía de Guanabara (como tantos outros brasileiros).
Caros amigos, não existe golpe de estado ou quartelada sem violência. Não existe ditadura boa e ditador bonzinho. Toda ditadura e todo ditador são ruins. Toda ditadura é um mal e todo ditador é um mau. Toda ditadura atua e sobrevive pela truculência, sendo o terror seu oxigênio. Aqui se aplica a máxima maquiavélica: “Ao príncipe é melhor ser temido a ser amado, pois o amor passa, mas o medo permanece”. Todo ditador, por mais tolerante, razoável e esclarecido que seja, tem a seu serviço, ainda que oficiosamente, torturadores sádicos e assassinos. Toda ditadura, tenha ela o colorido ideológico que tiver, seja civil ou militar, seja de direita ou de esquerda, seja totalitária ou autoritária, institui polícia política, prisões para opositores políticos, não admite o contraditório, desconfia da pluralidade, censura, reprime, oprime. Toda ditadura viola direitos humanos, direitos consagrados mundialmente do homem e cidadão.
Boa, exclusivamente, é a democracia, “o pior de todos os regimes à exceção de todos os outros”, diria Churchill, o inflexível conservador que derrotou o fascismo na Europa. Só a democracia garante ao ser humano sua irrefreável vocação para a liberdade: liberdade de opinião, liberdade de escolher seus representantes, liberdade de influir nos assuntos de governo, liberdade de oposição e de resistência à opressão estatal, liberdade de ser, de estar e de fazer. Na democracia a Constituição e as leis se sobrepõem aos governantes (que respondem pelos seus erros), sendo as leis produzidas pelo povo — mediante representantes ou diretamente —, buscando sempre (ainda que não acerte) o bem comum. Abraham Lincoln, parafraseando Daniel Webster, diria, em seu célebre discurso de Gettysburg, que “a democracia é o governo do povo, feito para o povo e pelo povo, e responsável perante o povo”. Só a democracia assegura direitos inalienáveis do ser humano e os meios legais necessários de preservação e defesa de tais direitos. Muito batida, mas de grande verdade, a mensagem de que “gosta de ditadura quem nunca viveu sob uma”, ou quem tem interesse pessoal em sua constituição, eu diria.
Para os saudosistas da ditadura de 1964 e para todas as demais pessoas, Ainda estou aqui vem nos lembrar de que nossa democracia é plantinha frágil, necessitando de radiação solar, água, boa terra, atenção, carinho e cuidados diários. Nossa democracia, reconquistada com grandes lutas e sacrifícios, tantas vezes maculada, vilipendiada, rasgada e ultrajada, encontra-se, nos dias atuais, sob gravíssimo bombardeio. Rogo a Deus para que os descrentes da democracia caiam em si e compreendam que a violência, a guerra e a tirania não são solução para nada, como ensina a História por incontáveis exemplos (agora relegados). Só a democracia, com seus pilares de liberdade e de igualdade de todos perante a lei, pode conferir a todos os brasileiros meios e mecanismos seguros de busca e conquista de concretização dos sonhos e gozo da almejada felicidade.