28 de dezembro de 2020 | 07h00
Ela, Rita, fará 73 anos no próximo dia 31 de dezembro. Ele, Roberto, fez 68 em 16 de novembro. Juntos, se tornaram um dos únicos casais entre seus contemporâneos do meio pop que vingaram e sobreviveram à lógica do próprio tempo em que se conheceram, há 44 anos, quando qualquer compromisso conjugal era visto como uma traição às liberdades conquistadas desde a década de 1960. Rita e Roberto se libertaram de um passado no qual poderiam viver até hoje ao virarem a chave que os livraria das tiranias do rock and roll para conduzi-los por lugares mais espaçosos. Sem um, o outro existiria sim, mas a história seria bem diferente.
Pela primeira vez, Rita e Roberto aceitam o convite de entrevistarem-se um ao outro. Combinaram de não saber o que perguntariam e talvez, se realmente aguentaram esperar, só saberão das respostas ao lerem essa matéria. Com fotos raras fornecidas pelo Acervo do Estadão (as quais também não conheciam até hoje), a entrevista revela que há mais do que afinidades musicais por trás de um amor afirmado nas canções e reafirmado no silêncio.
TUDO SOBRE: RITA LEE
Roberto de Carvalho: Parafraseando o Police, “we are spirits in a material world” (somos espíritos em um mundo material). Como você acha possível resolver esta equação?
Rita: Sou darwinista até a página 3. A raça humana é híbrida, metade celeste e metade terráquea. Houve até uma época em que éramos hermafroditas. Estar no mundo da matéria é uma experiência individual, intransferível e difícil, uma aventura do nosso espírito (que é eterno) mas que aqui na Nave Mãe Terra tem começo, meio e fim. Quando morremos, ‘voltamos para casa’ e planejamos a próxima viagem a caminho da Luz.
Se a vida terminasse amanhã, o que ficou faltando, o que ficou sobrando?
Rita: Ficou faltando realizar na Terra o velho mantra clichê dos hippies: Paz e Amor. Ficou sobrando uma gentalha tosca e cafona que só tem como meta de vida o poder material.
Há 30 anos, em Perto do Fogo, você disse que em 2020 ia ser tudo igual. A profecia se confirmou? Daqui a 30 anos, vai ser tudo igual?
Rita: Eu me referia ao estupro que o Brasil sofreu e ainda sofre desde seu descobrimento sob as canetadas toscas dos poderosos da vez e que continuaria tudo igual em 2020. Tenho um pressentimento de que em algum momento haverá uma interferência externa na consciência humana: no sentido de que ou nos autodestruímos com o aumento do poderio nuclear ou passamos no teste evolutivo proposto por nossos pais celestes.
Existe vida fora da Terra?
Rita: Com zilhões de galáxias, zilhões de planetas, zilhões de estrelas e zilhões de dimensões existentes no universo, é um tanto pretensioso e ignorante os terráqueos se imaginarem a única forma de vida que existe.
Geneticamente em você, prevalece uma metade italiana, uma metade americana. Essa arquitetura moldada em forma brasileira. Na formação da sua identidade onde esses genes prevalecem, se destacam?
Rita: Dos antepassados italianos herdei a alegria pela música, o deboche latino, os beijos e agarros de carinho, a paixão por cinema e a formação católica. Dos americanos herdei a disciplina, a independência, a responsabilidade, o duvidar das certezas e o interesse por ufologia.
Falando sobre Brasil, como colocar ordem no caos?
Rita: Houve uma época em que o caos brasileiro tinha um cotè charmoso, exótico e criativo, que encantava o mundo. Hoje, o caos está na política incompetente e corrupta, que corta o barato do nosso humor debochado instalando ódio entre ‘nós e eles’, enquanto se destrói a natureza, sempre cagando e andando para o futuro do país.
Por que uma grande parte da raça humana não consegue captar a divindade que existe nos animais?
Rita: Pela ignorância espiritual dos humanos em se considerarem arrogantemente como a única imagem e semelhança de um deus que eles mesmos inventaram, se achando superiores aos reinos mineral, vegetal e animal. A defesa da causa animal é a luta contra a nova escravidão.
O que esperar do mundo pós-pandemia?
Rita: Minha esperança um tanto utópica é pensar que essa pandemia trará um upgrade na consciência espiritual em um bom número de humanos em termos de respeito à nossa Nave Mãe Terra. Ainda vivemos em tribos, é hora de nos unirmos como uma única humanidade e respeitarmos todas as formas de vida.
O que de melhor a música trouxe para sua vida?
Rita: A música me trouxe a oportunidade de levar às pessoas alegria e divertimento, fazendo-as esquecer por uns momentos de seus problemas e de seus sofrimentos. É o tal do prazer em ter prazer comigo.
Você acaba de ganhar um dia num paraíso à sua escolha. Como você idealiza este dia? Quem e o que vai estar lá? O que não pode estar lá?
Rita: Imagino meu paraíso cheio de bichos e de plantas, com uma biblioteca completa, o poder de ter acesso aos mistérios numa dimensão superior onde reencontrarei almas queridas que se foram antes de mim, além de aprender coisas fantásticas com os mestres de Luz. Meu paraíso na Terra é ter você como companheiro de vida, melhor amigo, parceiro ideal musical, pai dos meus 3 filhos lindos e avô dos meus 2 netos fofos.
Rita entrevista Roberto
Rita: Como e quando descobriu que tinha ‘ouvido absoluto’? Confissão: cantar perto de você me dá uma certa vergonha pois sei que sou meio desafinada... mas no peito dos desafinados também bate um coração... que no caso é todo seu – não resisti a fazer uma declaraçãozinha.
Roberto: Quando eu tinha uns 12 anos, fiz aulas de piano com um professor chamado Amyrton Vallim. Além de ser um grande pianista, ele era cego, e, portanto, o sentido de audição dele era muito mais apurado do que o normal. Ele fez os testes de identificação das notas nos sons, então, fiquei sabendo que meu ouvido era absoluto e não relativo. O que não fez nenhuma diferença na minha vida, até acho que o ouvido absoluto tem algumas desvantagens. Por exemplo: quando você toca um instrumento e ele não está afinado corretamente, nas notas pré-estabelecidas, você se perde completamente, porque é o ouvido que está no comando, então, se você toca onde tem que ser uma nota Lá e ouve uma nota Dó, você perde o senso de direção. E quanto à sua declaração aí, bom, além de ser super afinada, você tem o mezzo soprano mais bonito que meus ouvidos já ouviram, a textura da emissão, cheia de ar, doce, a sensualidade delicada, bom, para mim é o nirvana. Please, confia na minha capacidade de avaliação e sinceridade.
Como você me aguenta há 44 anos? Confissão: Sou uma mulher esquisita, ex-presidiária, ex-AA (Alcoólicos Anônimos), ex-NA (Narcóticos Anônimos), não sei cozinhar, sou cinco anos mais velha, sem peito, sem bunda e fumante.
Roberto: Sou teleguiado pela paixonite há 44 anos, espero que tenhamos pelo menos mais 44 anos pela frente. Só consigo visualizar a antítese do que está nesta confissão. Quando você se declara esquisita, vejo original e genial. Ex-presidiária por injustiça, vítima da repressão. Não precisa cozinhar, eu cozinho pra você. Os peitos amamentaram nossos 3 filhos. Cinco anos mais velha, não, mais antiga, e você sabe o quanto eu adoro antiguidades. Tenho Vênus em Capricórnio, que sempre vai me ajudar a relevar essa sua Lua em Virgem que vejo se manifestando aí na confissão. E quanto aos AA e NA, well, “shit happens to everyone!” (merda acontece com todo mundo!).
Seu piano é desbundante e sua guitarra é poderosa. Qual outro pianista/guitarrista brasileiro além de você? Confissão: grande frustração/preguiça minha é não saber tocar piano nem guitarra pra valer.
Roberto: Poxa, não acho nada disto. Então, vou adiante, como pianista, tenho profunda admiração por João Donato e Cesar Camargo Mariano. Guitarrista, são muitos os que adoro, mas muitos são meus amigos, daí fica complicado fazer essa escolha de Sofia, sendo assim, fico com nosso filho Beto. Fico impressionado com a qualidade de guitarristas e músicos em geral que vejo no Instagram. Se hoje fosse montar uma banda, uma pesquisa no Instagram já dava conta do recado. E tenho que citar dois violões maravilhosos que para mim são influências basilares, João Gilberto e Gilberto Gil, além do Guinga e Yamandú entre tantos. E viva Caetano!
Você acha que essa sua paixão por quiabo tem a ver com algum ‘santo’? Confissão: Só de ver aquela baba do quiabo me faz ter ojeriza. Meu ‘santo’ é chegado num acarajé.
Roberto: Ah, certamente o quiabo tem um significado esotérico, apesar de eu não saber exatamente qual. O quiabo é de origem africana e na umbanda é ofertado a diversos orixás com finalidades diferentes. O fato é que para mim quiabo é força, energia, raiz, quase como uma droga, me dá barato.
Há alguma possibilidade de vc escrever uma autobiografia contando seu lado da história? Confissão: eu seria a primeira a comprar.
Roberto: Nesse lance de quarentena, tenho passado uma boa parte do tempo meditando sobre o tanto de situações que aconteceram ao longo da vida e que passaram meio batidas. Tentando criar uma expedição arqueológica na minha memória. Acho que tive uma vida bem interessante, mas sou reservado demais para autobiografias, além de ter a certeza de que minha vida não seria do interesse de ninguém além de mim mesmo. Provavelmente, você seria a primeira e a última a comprar (risos)!
Você é um cara pragmático e enigmático, tem uma sensibilidade incrível de sacar o ‘qual é’ das pessoas assim que põe os olhos nela. De onde vem esses sopros? Confissão: eu caio direto na conversa dos outros e geralmente me estrepo.
Roberto: Tem a ver com o fato de ter perdido minha mãe muito cedo, com 6 anos. Já notei que quem passa por essa experiência fica com uma consciência exagerada, beirando a paranoia, de que de repente você pode perder tudo. Claro que qualquer um pode de repente perder tudo. Mas a mãe, para uma criança, simboliza o "tudo" mais do que tudo. E passando por isso, você fica com uma necessidade exacerbada de avaliar repercussão e de se precaver o quanto possível de qualquer imprevidência. O que talvez seja uma ilusão. O sopro da intuição a gente sempre vai ouvir, mas devemos sempre questionar. Nem sempre sabemos de onde o sopro está vindo. Isto é cabalístico. Never trust your intuition (Nunca confie na sua intuição). Eu tinha certeza, na virada do ano, que 2020 ia ser um ano sensacional, histórico... e veja o que está acontecendo.
Sei que você se diz agnóstico, mas existe uma tradição espiritual com a qual você mais se identifica/simpatiza? Confissão: eu continuo sendo hippie e tenho um altar com imagens de divindades diversas, sou de todas e não sou de nenhuma. Minha praia mesmo são os extraterrestres.
Roberto: Simpatizo com várias, me identifico com algumas, não pratico nenhuma. Rezo na tradição católica e a Grande Invocação, tenho santos de devoção e acredito nas Grandes Luzes do Universo. Mas a Kabbalah, que não é uma religião, realmente faz sentido na busca do invisível, porque não elimina o visível. Rejeita dogmas, convida e incita aos questionamentos, ensina a construção de uma estrutura, de um sistema de método e disciplina, totalmente abrangente, que vai da existência mais individual e densa possível até a mais etérea e espiritual, decifrando tudo que está entre uma ponta e outra. Faz o maior sentido e é um incrível instrumento de navegação através dos oceanos tempestuosos de nossa existência.
Você é mais ‘cachorreiro’ do que ‘gateiro’, o que te desperta no cachorro que o gato não tem? Confissão: isso tudo só pra você saber que desde que minha guardiã preta Sophia morreu com 27 anos, estou com a alma carente de um novo gato pretinho...
Roberto: É que sou um cachorro disfarçado de humano, é uma questão de identificação pura e simples.
Com a idade, você tem se tornado cada vez mais charmoso e interessante. Envelhecer dá barato? Confissão: digo a mim mesma que ‘vaso ruim e velho quebra, mas se colar fica perfeito, 'and you know what I mean' (você sabe o que eu quero dizer)...
Roberto: Acho que são seus bons olhos que me veem! Envelhecer pode trazer expansão de consciência, capacidade de filtrar e de reduzir o desnecessário e supérfluo, cresce uma calma interior, você não está mais no olho do furacão, não precisa provar muita coisa. Desapego para gerar um novo posicionamento em relação ao inevitável ponto final. E limitações físicas começam a dar as caras.
Outro dia você estava lendo Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire. Como você percebe o Brasil de hoje? Confissão: sinto que esta é minha primeira vida no Brasil. Nunca quis fazer carreira no exterior, sou filha de imigrantes e meu lance sempre foi ficar aqui por amor a este país que anda tão mal governado.
Roberto: Tem muita coisa errada no Brasil e no mundo, sem solução à vista. Estamos vivendo uma distopia sem precedentes com essa pandemia. A origem do mal é em grande parte a necessidade atávica das classes dominantes de explorar, controlar, seduzir e impor a vontade em benefício próprio. O instrumento é o domínio racial, social, ideológico, político, de gênero, de tudo, da apropriação indevida da verdade, do domínio da narrativa. Não existem sinais claros de que isto algum dia isso vá mudar, apesar de existir muita gente do bem que se esforça para segurar a peteca e fazer o contrapeso. Agora, como cada qual tem sua própria utopia, na minha não existe a hipótese de ser governado por ninguém ou por nada. E ídem de governar seja lá o que for além de mim mesmo. É claro que essa utopia me provoca uma tremenda irritação ao constatar a estupidez e a incompetência dos tantos que governam o mundo. Escrúpulo é algo cada vez mais raro. A raça humana evolui na ciência, mas no sentido de progresso social ainda estamos muito longe do aceitável. Lampejos de irracionalidade estão pipocando em toda parte. Essa pandemia, que atingiu todo mundo, pode ter sido uma voz que mais alta se alevanta avisando para todo mundo: "Ó, perdeu!”. Mas vamos em frente que atrás vem gente!