PADRE CARLOS, UM ESPANHOL SERTANEJO
Raimundo Floriano
Padre Carlos em 1951, 1970 e 2010
Hoje, dia 15 de agosto, comemora-se a Assunção de Nossa Senhora, a subida do corpo da Virgem Maria aos céus, levado pelos anjos. E hoje, nesta manhã em que lhes escrevo, recebo a notícia de que a puríssima alma do amigo Padre Carlos também foi assunta ao Paraíso Celeste, levada pelas virtudes que esse admirável e exemplar sacerdote demonstrou em sua vida terrena.
Padre Frei Carlos Lorenzo Martinez Esteban (86), nasceu em Huesca, Espanha, porta de entrada do Pirineu Aragonês às margens do Rio Gállego, no dia 10 de agosto de 1925.
Iniciou seus estudos naquela cidade, no Colégio Santa Rosa, sob a direção das Irmãs Dominicanas, depois cursando o Ensino Fundamental no Colégio dos Clérigos de São Viator e Ensino Médio no Instituto Público Ramón y Cajal.
Em sua juventude, tempo de sonhos e ideais, soube muito bem concatenar os estudos com atividades de lazer como acampamentos e práticas esportivas: natação, basquete, montanhismo e futebol.
Vistas parciais de Huesca
Durante a Guerra Civil Espanhola, de 1936 a 1939, quando a Nação se dividiu em duas zonas, numa guerra civil entre irmãos, por motivos políticos, ideológicos e religiosos, teve que emigrar para a cidade de Viana, Província de Navarra, mãe e irmãos para um lado, pai para outro. Foi um tempo de atrocidades e perseguições, quando se fecharam colégios, transformando-os em hospitais de campanhas, com bombardeios frequentes, barricadas e trincheiras nas ruas, comunicações interceptadas, escassez de alimentos e água, a moeda oficial desvalorizada e substituída por tíquetes. Terminado o conflito fratricida, a família voltou a reunir-se em Huesca.
Como sua cidade natal não dispunha de curso universitário, Carlos Lorenzo seguiu para a Capital, Madri, onde, após estudos preparatórios intensivos, optou pela carreira militar. Inscreveu-se na Academia Geral Militar, de Zaragoza, e na Academia Geral Militar da Aeronáutica, em Múscia, prestando os exames correspondentes em 1945 e 1947, sem muita convicção quanto à carreira a abraçar. E foi aí que ele vivenciou radical guinada, bafejado por sua real vocação.
Em visita a um conterrâneo seu, Frei Mariano Mompradé, da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, ou Mercedária, tomou conhecimento dessa ordem religiosa da qual jamais ouvira falar, mas que, pouco a pouco, lhe foi provocando certa inquietação vocacional. Seria um germe? Seria uma raiz plantada em sua consciência, que o vai motivando? Seria um chamado de Deus? Contatos frequentes com Frei Mariano fizeram com que tal semente germinasse em seu coração e começasse a criar profundas raízes.
Partiu, então, para o estudo da bibliografia sobre a Ordem, fundada por São Pedro Nolasco, em 1218, no intuito de empenhar-se na redenção dos cativos, presos e escravizados pelos povos e piratas árabes sarracenos, submetidos a sofrimentos físicos e morais, correndo o risco de perder a fé. Feita a opção, dá o primeiro passo na experiência religiosa, em 1947, internando-se no Convento da Ordem Mercedária em Verin, Província de Galícia, para seu Noviciado.
Sua Profissão de Fé se deu no dia 12 de setembro de 1948, com sua incorporação à Família Mercedária, ao prometer a observância regular dos votos religiosos que, resumidamente, adiante se leem:
Pobreza - Atitude de desprendimento interior. Nada possuir individualmente; Obediência - Não apenas externa, mas submissão interna, comprometendo-se a realizar a vontade de Deus sem menosprezar a dignidade humana; Castidade - Compromisso de observar a perfeita continência e o celibato, oferecendo-se a Deus sem dividir o coração; e Redenção - Promessa de dar a vida, se necessário, como Cristo a deu pela humanidade, a fim de salvar os cristãos que se encontrem, nas novas formas de cativeiro, em extremo perigo de perder a fé.
No dia 8 de dezembro de 1951, na Festa da Imaculada Conceição, após emitir votos perpétuos e solenes, o destino e a necessidade da preparação puramente sacerdotal levam o já Frei Carlos Lorenzo até o Mosteiro de São João de Poio, na Província galega de Pontevedra, onde se iniciará sua formação filosófica e teológica, em quatro anos de rigorosa observância: clausura e silêncio; orações; canto coral e gregoriano; estudos e aulas; trabalhos e lazer; passeios e banhos de mar; meditação e Santa Missa conventual diária; disciplina e austeridade monacal.
No dia 1º de agosto de 1954, finalmente, foi ordenado Padre. Celebrou sua Primeira Missa em Madri, no dia 10 daquele mês. Após sete anos sem gozar da visita dos entes queridos, teve direito a um mês férias.
Sua primeira destinação como Padre foi para Olivenza, na Província de Badajoz, para desempenhar o papel de Preceptor numa fazenda. Isso durou até 1955. Depois, foi destinado ao Convento de Santa Maria Madalena, no Caminho de Santiago, para ministrar aulas a Seminaristas, onde ficou até 1956.
Seu grande sonho, jamais realizado, era a destinação para o Coração da África, que abrange a área onde se situam Burundi, Ruanda, Tanzânia e Zaire. O homem põe, e Deus dispõe, diz a sabedoria popular. Em 1956, com 31 anos de idade, Padre Frei Carlos Lorenzo Martinez Esteban, mais conhecido apenas como Padre Carlos, foi destinado para o grande desafio de sua vida, o Sul do Piauí, a região mais desprotegida e pobre de todo o Brasil, tendo como referências as cidades de São Raimundo Nonato, Bom Jesus do Gurgueia e Corrente.
Eu fico a imaginar qual foi o impacto sofrido pelo jovem sacerdote saindo de um dos países mais evoluídos da Europa e indo socar-se naquele sertão flagelado do Nordeste Brasileiro, no Polígono das Secas, onde os açudes secaram, o chão rachara e não se vislumbrava sinal de chuva.
Naqueles ermos, não havia água encanada, esgotos, telefone, correio, agência bancária e qualquer outro meio de comunicação com o resto do País que não fosse a escala bimensal de um avião da FAB - Força Aérea Brasileira, ligando a área a Belém do Pará. Era uma população entregue a si mesma, sem médicos, sem enfermeiras, sem assistência social, terra em que somente não se prescindia de Juiz e de Advogado, eis que a criminalidade e a natalidade ali cresciam na mesma proporção da miséria.
Foi este o Cenário que Padre Carlos teve que enfrentar, sem desânimo, com toda a coragem: transportar-se em lombo de burro ou jumento, distribuir alguns alimentos e ministrar todos os Sacramentos em casas de taipa, infestadas de barbeiros, procurando alfabetizar, assistir, ensinar, dar remédios, nada esperando em reconhecimento. Improvisar capelas, que eram simples telheiros, para que não desaparecesse, com a ausência dos missionários, a presença de Deus, o único a lembrar-se da existência daquele mundo.
Além de sua missão Mercedária, Padre Carlos foi grande educador por onde passou, dirigindo vários colégios e também lecionando, principalmente as matérias em que era “cobra”: Filosofia, Teologia, História, Latim e Matemática. Em 1995, foi ele destinado para Brasília, após 39 anos de serviços prestados àquela gente, com pequeno interregno, quando cumpriu tarefas na Ilha de Paquetá e em Ramos (RJ), logo retornando ao Piauí.
Aqui em Brasília, seu destino foi a Paróquia do Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora das Mercês, na Quadra 615 Sul, que abrange a quadra onde resido. Desde sua chegada, Padre Carlos passou a ser o orientador espiritual de nossa família. Com o tempo, angariamos também sua amizade. Eu e Veroni, minha mulher, sempre assistimos às suas Missas às 08h00 de todos os domingos. Por tudo isso, seu falecimento deixou-nos por demais consternados.
No ano passado, Padre Carlos lançou o livro Pinceladas de Uma Vida, do qual extraí ou copiei a maioria das informações biográficas, históricas e outras que compõem este meu texto. No canto superior esquerdo da capa, seu brasão, que combina o da Ordem Mercedária com os das Famílias Martinez e Esteban.
Padre Carlos gostava de meus escritos. Leu meus dois últimos livros e aceitou, numa boa, minha condição de Cardeal da Igreja Sertaneja. Além disso, era detentor de um bom humor inigualável. Por ser flamenguista, gostava de alfinetar-me todos os domingos, nos tempos em que o Vasco ia de mal para pior. Fui à forra na época da posse do Papa Bento XVI, ao lembrar-lhe que o manto pontifício está coalhado de cruzes de malta.
Tornou-se nordestino legítimo, em 1999, ao ser agraciado com o título de Cidadão Honorário pela Câmara Municipal de Bom Jesus do Gurgueia. Nada mais justo e apropriado. Transcrevo adiante dois trechos de seu livro, nos quais se vê sua perfeita integração à natureza da gente nordestina, emparelhado àqueles sertanejos fortes, que, em qualquer circunstância, sabem rir das dificuldades que atravessam e até de si próprios:
“Uma vez, indo de Gilbués para Corrente, voando em um avião bimotor do Comando Aéreo da FAB, aconteceu que, chegando perto do destino, uma tormenta com chuvas fortes dificultou a aterrissagem, pois a pista era de terra, e o avião poderia atolar. Era preciso arriscar. Fomos orientados, eu e mais duas passageiras, a pular da aeronave, sem que ela parasse, abrindo-se a porta desde o momento em que se iniciasse o contato do trem de pouso com a pista, para, imediatamente, acelerar, arremeter e levantar voo, seguindo a viagem. Graças a Deus, tudo deu certo.”
“Meu transporte agora é um cavalo alazão, robusto e de boa aparência. Após algumas horas de viagem, deu para perceber como o animal começava a transpirar, suando exageradamente e demonstrando cansaço, com a respiração ofegante. O jeito foi apear, soltar os arreios e observar o animal extenuado e deitado no chão. Era pelo meio-dia, na força do calor, quando, de repente, surgiu um caboclo andarilho, que passava pelo local e resultava ser um ‘rezador’ que, vendo a situação e utilizando um raminho de folhas arrancadas da beira da estrada, fez cruzes na barriga do cavalo, balbuciando alguma imprecação. Confesso que também rezei interiormente, para superar o impasse. Passados alguns minutos de recuperação, o caboclo, puxando o animal pela rédea, garantiu: ‘Pode seguir viagem, que tudo já passou.’ De fato, ao anoitecer, no segundo dia de caminhada, o destino foi alcançado. Bonita odisseia que marca e da qual não se esquece facilmente.”
Na Páscoa de 2007, como fazia todos os anos, presenteei-o com um ovo de chocolate, ato que ficou registrado na foto abaixo, seguida de pequena dedicatória.
Amigo Raimundo:
¡¡Feliz Páscoa!!
Pe. Carlos
Brasília, 08/04/2007
Velho ou idoso? – pergunta Padre Carlos em seu livro. E ele mesmo responde: “Velha a pessoa que perdeu a jovialidade; idosa é uma pessoa que tem idade. Você é velho quando apenas dorme; é idoso quando sonha. É velho quando já nem ensina; é idoso quando ainda aprende. É velho quando apenas descansa; é idoso quando seu calendário tem amanhãs.”
Verdadeiramente, com sua marcante personalidade bem-humorada, Padre Carlos, com 86 anos e dias, nunca foi um velho. Evidência cabal disso é o livro que escreveu aos 85.
A partir do início deste século, enfrentou, com coragem e galhardia, seriíssimos problemas de saúde, que nunca lhe arrefeceram o ânimo. Em abril de 2000, devido a sua baixa pulsação cardíaca, passou a usar um marca-passo. Há uns três meses, viu-se acometido de severos problemas gastrovesiculares, que o levaram a internações hospitalares e, finalmente, ao término de sua existência.
O mês de agosto marcou a vida de Padre Carlos por importantes acontecimentos: 10.08.1921, casamento de seus pais, José e Conceição, em Sevilha; 10.08.1925, seu natalício; 12.08.1925, seu Registro Civil; 28.08.1925, seu Batismo; 1º.08.1954, sua Ordenação; 10.08.1954, sua Primeira Missa; 15.08.2011, entrega de sua alma ao Pai.
Concelebramos a última Santa Missa juntos no dia 31 de julho passado. Cumprimentei-o na porta da Sacristia. Seu aperto de mão foi caloroso, mas seu semblante estava sombrio. Não me dirigiu qualquer das brincadeiras de costume. Apenas pronunciou meu nome. Parecia estar a despedir-se.
Por todo o trabalho e evangelização que desempenhou na vida, levando aos locais mais inóspitos a Palavra de Deus, pelo amor sempre dedicado a seus semelhantes, venho endereçar meu reconhecido aplauso a esse amigão que se foi:
– Bravo, Padre Carlos! Missão cumprida! Valeu! Confiantemente, segure na Mão de Deus e vá!