08 de maio de 2021 | 05h00
Como uma mulher comum – sem superpoderes, fortuna ou uma faixa-preta em artes marciais – poderia se vingar de violência sexual? Foi essa uma das perguntas que motivaram Emerald Fennell a escrever e dirigir seu filme de estreia, Bela Vingança (cujo título em inglês, Promising Young Woman, se traduz para “jovem promissora”), já em cartaz nos cinemas. As respostas propostas por Fennell estrearam ano passado, no Festival Sundance de Cinema, e, depois, renderam nada menos que o Oscar de melhor roteiro original. Além disso, o filme vem sendo saudado pela crítica e por analistas como um saudável contraponto a várias representações e abordagens problemáticas do tema da violência sexual.
Para entregar apenas o que já consta no trailer, a história começa com a protagonista, Cassie (Carey Mulligan), em uma balada, visivelmente embriagada, a ponto de mal conseguir erguer a própria cabeça. Alguns homens nas redondezas começam a flertar com a possibilidade de se aproveitarem da situação. Finalmente, ela é abordada por um rapaz bem-intencionado que quer ajudá-la a escapar do perigo e oferece uma carona. No meio da corrida, ele desconfia que rolou um clima e propõe uma saideira em seu apartamento. A situação progride até o sofá do rapaz e, depois – quando Cassie diz que precisa se deitar –, até a cama, onde ele passa a beijá-la. Ela, semiconsciente, começa a balbuciar: “O que você está fazendo?”. O rapaz começa a despir a mulher. É nesse momento que o olhar desorientado da protagonista ganha foco. “O que você está fazendo?”, repete, assertiva, com pronúncia impecável. O rapaz se dá conta de duas coisas. Primeiro: Cassie, na verdade, está sóbria. Segundo: ele não estava sendo um cara tão legal quanto imaginou.
“Há muitos filmes que retratam o estupro, mas não fazem dele um tema de conversa, usam (a trama) apenas como artífice do desenvolvimento do personagem, seja masculino ou feminino”, disse ao Estadão a antropóloga Beatriz Accioly Lins, especialista em violência contra mulheres, consultora do Instituto do Cinema e coordenadora de pesquisa do Instituto Avon. Ela explica que, em geral, cenas de violência sexual são usadas pelos cineastas como uma ferramenta para demonstrar o nível de desvirtuação moral de personagens – como em Laranja Mecânica – ou como justificativa de todo o restante da trama, seja uma história de superação feminina ou uma narrativa ao redor do homem que vinga a honra da mulher que ele ama. “É incomum que o estupro não seja um mero artifício narrativo, mas o próprio tema do filme”, disse a antropóloga, que salienta a necessidade de abordar questões como a centralidade do consentimento.
“O fato de as mulheres estarem embriagadas, ou não poderem consentir o sexo, transforma a interação em violadora. Muitos homens que são acusados argumentam que não usaram de força ou que não tinham a intenção (de cometer violência sexual). Mas é central discutir que só isso não é o suficiente para impedir que haja uma violência. É preciso que as duas partes estejam conscientes e capazes de consentir”, conclui.
O que a antropóloga diz sobre a necessidade de consentimento passou a constar em lei no Brasil, a partir de 2018, quando foi criado o crime de importunação sexual: “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. A pena vai de um a cinco anos de prisão. Até 2018, havia um limbo jurídico entre o estupro – praticado com uso de força ou ameaça – e a antiga contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor.
Apesar da seriedade da trama, Bela Vingança contém momentos engraçados e cenas idênticas ao que se espera de uma comédia romântica. Além disso, a estética do longa é uma ode sincera ao feminino estereotipado: a trilha sonora inclui hits de Britney Spears, o figurino está repleto de estampas florais, a paleta de cores das cenas é vibrante e as unhas de Cassie são pintadas com candy colors, as cores suaves que remetem às tonalidades de confeitos.
Para interpretar os homens que tentam fazer coisas erradas, Fennell propositalmente escalou um time de atores conhecidos por seus papéis de bons moços. Adam Brody viveu Seth Cohen, o nerd com um coração de ouro na série The O.C.; Christopher Mintz-Plasse, do longa Superbad (2007), ficou famoso no papel de um adolescente tão ingênuo que se batizou de “McLovin” na identidade falsa. Sam Richardson é conhecido por seu personagem amável, Richard Splett, na série Veep. Há também Max Greenfield, o arrumadinho Schimdt do seriado New Girl, e Chris Lowell, o sensível Piz de Veronica Mars.
“É fácil condenar (violência sexual) quando os envolvidos são pessoas que você já achava desprezíveis. O assunto passa a ser complicado quando são pessoas que você ama e respeita”, argumentou Fennell à revista Entertainment Weekly, ao falar sobre a escolha dos atores.
Accioly Lins sustenta que filmes são importantes para desbancar o mito de que um estuprador é um desconhecido que está em uma rua escura e usa uma arma e um capuz. “O estupro acontece de formas muito variadas e é muito comum que envolva conhecidos ou amigos da mulher violada e não necessariamente precisa que haja violência”, explicou.
Jasmin Rosemberg, ex-editora da revista Variety – ela própria sobrevivente de uma violação ocorrida há dez anos –, elogiou Bela Vingança por mostrar como um trauma pode pesar sobre a vida das pessoas afetadas. A personagem Cassie não perde o seu protagonismo, como acontece com muitas vítimas estereotipadas, mas também não supera o assunto. Sua vida estaciona em função de um plano de retribuição. Em boa parte do filme, o espectador fica sem saber até onde Cassie está indo de fato em sua busca por vingança – é preciso assistir ao longa para saber. Darren Mooney, colunista da revista The Escapist, observou que essa ambiguidade força o espectador a se perguntar até onde ele quer que a vingança chegue.
Crítica: Em alguns momentos, filme se aproxima de um drama familiar
Deu zebra na recente premiação do Oscar. Havia a expectativa de que Chadwick Boseman recebesse postumamente o Oscar de melhor ator, por A Voz Suprema do Blues, mas ele perdeu para Anthony Hopkins, de Meu Pai, que nem estava presente. O começo já fora anticlimático. Indicado em seis categorias, Nomadland, de Chloé Zhao, venceu em três – melhor filme, direção e atriz, Frances McDormand –, mas perdeu (para Meu Pai) a prestigiada estatueta de roteiro adaptado.
Quem venceu na categoria de roteiro original foi a diretora e roteirista Emerald Fennell, por Bela Vingança. O filme chegou aos cinemas nesta quinta, 6. Nem é preciso lembrar o filme Mank para destacar a importância acordada pela indústria ao roteiro. Segundo as teses de Pauline Kael e Jack Fincher, pai do diretor David Fincher, o roteirista Herman Mankiewicz e não Orson Welles seria o autor de Cidadão Kane. E Emerald Fennell aborda um tema forte.
Desde À Procura de Mr. Goodbar, de Richard Brooks, de 1977, e talvez até antes, mulheres liberadas, em busca de parceiros sexuais, têm sido o flagelo da família norte-americana. Glenn Close fez história em Atração Fatal, o thriller de Adrian Lyne, de 1987. Bela Vingança seria o Atração Fatal dos anos 2020, repaginado para a era do #MeToo. Não é bem exato. O filme tem mais a ver com Em Carne Viva, de Jane Campion, com Meg Ryan, de 2003, e Valente, de Neil Jordan, com Jodie Foster, de 2007. Jodie pega em armas e vira vigilante, qual uma Charles Bronson de saias. O que a consome é o desejo de matar o homem que executou seu namorado e a violentou no Central Park, à noite. Sempre a noite para expressar desejos inconfessáveis.
No original, Bela Vingança chama-se Promising Young Woman. A promissora mulher jovem é Carey Mulligan, que chega aos 30 anos com a vida estagnada. Nunca se recuperou com o que ocorreu com a melhor amiga. A garota foi estuprada numa festinha da escola de medicina. O estuprador-mor saiu ileso, porque o sistema protege os homens. Se a garota bebeu, provocando os machos, é porque estava afim. Em vez de defendê-la, a diretora da escola prefere conceder o benefício da dúvida ao estuprador.
Em 1988, Jodie Foster ganhou seu primeiro Oscar por Acusados, de Jonathan Kaplan. A garota abusada, que foi violentada no bilhar. Jodie, nesse filme, não pega em armas, mas, com a ajuda da advogada Kelly McGillis leva o caso ao tribunal. Conseguem provar que a vítima não é culpada. Em Bela Vingança, Carey banca a vulnerável para atrair os homens à sua armadilha. Apaixona-se por um antigo colega, mas a ligação é condenada.
O diferencial, aqui, é a internet, a forma como Cassie/Carey usa as ferramentas da nova tecnologia para se vingar. Como quase todas as mulheres dos filmes citados, ela paga um preço, mas vence – uma vitória de Pirro? Em alguns momentos – a relação com a mãe e, principalmente, com o pai –, Emerald vislumbra algo parecido com um drama intimista familiar. Mudam as armas, mas, na ‘América’, você sabe, os conflitos se resolvem pela violência. O detalhe: Emerald é atriz na série The Crown. Faz Camilla, a Condessa da Cornualha, que, por décadas, foi a outra na vida do príncipe Charles. Como Camilla, Emerald foi paciente. Sempre soube seu lugar. A bela vingança, via Cassie, é dela. / Luiz Carlos Merten