OS VERSOS QUE TE FIZ
Sileimann Kalil Botelho
Dizem que, se sentirem a aproximação da morte, os elefantes costumam empreender o caminho de volta para a região onde nasceram e onde esperam, pacientemente, o fim próximo.
Creio que isso, de fato, aconteça e penso mais que, também o homem, como todos os animais, sofre dessa síndrome de retorno à terra natal.
Parto do meu próprio exemplo de migrante compulsório que teve de abandonar sua terra aos treze anos de idade e que alimentou o sonho, por mais de cinquenta anos.
Esse sonho falava de um retorno em situação equilibrada, quando montaria um pequeno jornal em que pudesse um outro sonho de contar, em letras de fôrma, as vicissitudes da luta pela sobrevivência; publicar alguns dos poemas que escrevera desde menino e fazer um registro semanal dos fatos que fossem desenrolando naquela que fora minha cidadezinha ideal.
Hoje, apenas mais um caipira/vagabundo, desses que tropeçam pelas ruas da metrópole, confesso quão lamentável me parece não ter podido fazê-lo. Os fatos trabalharam contra mim e, já disse alguém, – "não se brigam com fatos".
Consola-me saber que fiz algum esforço sem, contudo, ter conseguido realizar o velho sonho de ir esperar a morte na velha cidade que me viu nascer e de onde considero ter sido expulso por três vezes, como lhes conto:
A primeira delas ocorreu quando, dois anos após a morte de meu pai e esgotados os parcos recursos que deixara, minha mãe chamou-me (o filho mais velho) para explicar que, também, a casa, nos estavam tomando: que íamos passar fome e não queria fazê-lo na cidade onde era membro respeitável da sociedade. Certamente, não sabia quem era Menotti del Picchia e não pudera ouvir-lhe o conselho dos versos magistrais onde ensinava: "Não vás, porque nós bem sabemos que, na terra natal, a própria dor dói menos".
E partimos, numa balsa do Major Edísio Cesário da Silva, que nos cedera gratuitamente o espaço, para uma via-crúcis que o grande remédio do tempo não consegue fazer esquecer.
Minha segunda expulsão ocorreu de uma forma também comum nestes vastos Brasis de injustiça e miséria e onde há sempre pessoas "mais iguais" que outras, desde os distantes tempos de Pedro Álvares Cabral: Tinha um emprego estável e uma mulher, também estável, professora do Estado. Consegui nossa remoção para a cidade, mas, ao chegarmos, o Prefeito declarou que não daria posse, porque, no Grupo, só havia uma vaga que, estava reservada para uma sobrinha que se estava formando. Se quiséssemos, conseguiria uma vaga em cidade próxima para onde poderíamos ir.
Respondemos que ele tinha muitas sobrinhas e podia, perfeitamente, reservar essa outra vaga a alguma delas. E partimos de volta para o exílio.
E, a terceira expulsão, seria apenas uma das muitas brincadeiras que aprendi a fazer, na luta pela sobrevivência.
Meu sobrinho (e poeta) Odilon Nunes Botelho Júnior queria levar-me para ouvir com ele, os sinos da velha Matriz de Santo Antônio, onde fomos batizados. Era um convite tentador, quase irrecusável. Mas, veio acompanhado de um exemplar da História do Sul do Maranhão, escrita por Eloy Coelho Netto, meu antigo colega de bancos escolares. E foi nessa razoável História, que verifiquei estar sendo, pela terceira vez, expulso da minha cidade. O autor, em vários capítulos, analisa, com alguma competência, todos os aspectos físicos e humanos do promissor município e cita as principais famílias que praticamente o fizeram, desde a fundação da cidade. E a minha família não estava lá, embora nossas mães fossem amigas, nossos pais jogassem diárias e barulhentas partidas de gamão, e nós dois tivéssemos alisado os mesmos bancos do famoso Educandário Coelho Neto. Mas, talvez estranha coincidência, aquele Major Edísio que nos dera as passagens da primeira expulsão, era pai do autor.
Para mim, foi demais. Não consegui deixar de sentir-me excluído e, por isso, cancelei a viagem que, talvez, pudesse ter-me levado a realizar o velho sonho.
E, também, talvez, para dissimular um pouco, escrevi os versos abaixo, que dediquei ao Júnior e o transformei em mensageiro da minha mágoa:
Os versos que te fiz na aprendizagem
Do meu exílio, deste estar distante
Fracos de rima, tíbios na mensagem
Rasguei-os todos... Pobre diletante!
Mas tinham eles o frescor da aragem
Que te perpassa o solo a cada instante
O perfume das flores, a paisagem
A água do rio, pura, borbulhante.
Tinham o sabor da murta e da mangaba
Que eu colhia, no antigo Potosi
Em trançados bornais de piaçaba
E o amargor do pranto que verti
Na solidão que sobre mim desaba
Desde o dia fatal em que parti
(São apenas sessenta anos. "Mas, como doem".)
Nota do Editor: O escritor e poeta balsense Sileimann Kalil Botelho faleceu em Sobradinho (DF), no dia 24.04.2013, aos 86 anos de idade. É dele o poema Festas de Junho, publicado à página 89 de meu livro Memorial Balsense.
Meu grande Tio Sileimann,... quanta falta faz ao nosso cenário diário,... quanta falta faz o ultimo sobrevivente dos moicanos, dos muitos honrados em que tive o prazer em dar-te bençãos, irmão mais velho do meu pai Boanice Botelho Kalil (falecido). Saudades eternas!!! Meu consolo é que um dia iremos nos encontrar.