O Moinho dos Ventos de Don Quixote
Bom dia,
Vou lhes contar uma estória que poderia ser uma história. A história de como procurar o vento, encontrando os moinhos. Encontra-lo, usá-lo e transforma-lo num viés da vida.
Sendo mais atual: baixar e usar o vento como um “aplicativo”.
Não sou Miguel de Cervantes Saavedra, tampouco sou filho de Rodrigo Cervantes e de Leonor Baptizóle, e, muito menos, nasci em Alcalá de Henares.
Na verdade, sou filho de Alfredo e Jordina, e nasci em Queimadas, ainda hoje pertencente ao município cearense de Pacajus. Sou negro, filho de uma quinta geração de africanos e uma mistura indígena.
Cedo ainda, com espírito de viajante e “percurador de alguma coisa”, fiz amizade com um primo, meu escudeiro que nunca foi Sancho Pança. Cedo, por comer muito, mereceu a alcunha de Barrigudo. Luciano Barrigudo.
Juntos, sem montaria, mas sempre caminhando na direção favorável ao vento, eu e Barrigudo, com bornal à tiracolo e baladeira em punho, saíamos caçando o vento. Difícil encontra-lo, haja vista que ele (o vento) estava sempre à nossa frente. Provavelmente movimentando algum moinho.
Não procurávamos moinhos – na verdade, minha Avó tinha um em casa, afixado na ponta da mesa grande que servia para tudo – mas, passarinhos e às vezes, considerávamos sorte se encontrássemos uma casa de marimbondos com mel.
Nisso, o vento que soprava favorável, era nosso parceiro e nos levava na direção certa do mel. Mel de marimbondos. Às vezes, até mesmo mel de abelha jandaíra ou araçá.
Para que desejar ser Don Quixote, se sabíamos aonde estava o moinho?
E, para que encontrar o moinho, se já tínhamos o vento a nosso favor, nos levando ao mel dos marimbondos e das abelhas?
Uma coisa era certa: afixado na ponta da mesa, lá estava o moinho. Claro que não era o moinho que Don Quixote e Sancho Pança tanto cavalgaram para encontrar – mas era o moinho da Vovó afixado na ponta da mesa e com meia saca de milho para moer e fazer xerém para os pintos.
E no moinho da Vovó, diferentemente do moinho de Don Quixote e Sancho Pança, eu não tinha nunca a ajuda do escudeiro Luciano Barrigudo. Tinha que moer o milho todo. Sozinho. Embora os pintos fossem tantos.
O Moinho de moer milho da Vovó
Enquanto Cervantes se casaria com Catalina de Salazar em 1584, eu, moendo milho para Raimunda Buretama, precisei mudar para Fortaleza, onde namorei uma atriz de teatro, de quem me dou o direito de não citar o nome. Casar, casei mesmo foi com Marlene, em 1973, ou 389 anos depois. Cervantes voltou para Castela, mas eu não voltei para Queimadas.
Em outras oportunidades já falei quase tudo sobre minha Avó materna. Raimunda Ferreira Gurgel, conhecida onde morava por toda vida, como “Raimunda Buretama”, por ser casa com meu Avô, esse nascido no município de Uruburetama. O povo amigo preferiu “Buretama”, e assim ficou.
Diferente de Don Quixote, João, meu avô, nunca cavalgou procurando moinhos. Quando queria o vento, sentava no portal da porteira e ali recebia “a chegada do vento percebida pela frescura”.
Desnecessário procurar moinhos, pois ele tinha o dele. Pesado. Antigo. Era nele que moía o milho que precisávamos – o dos pintos, quem moía era eu, no moinho afixado na ponta da mesa grande – fazer além do xerém.
Moinho antigo de pedra a relíquia do Vovô
Contava meu Avô, que aquele moinho antigo, grande e pesado fora presente que ele ganhou do tetravô, quando ainda moravam em Uruburetama, mais precisamente no quilombo onde fora criado. Tinha, para ele, valor inestimável e por diversas vezes deixou de vender ou até trocar por uma vaca leiteira.
Ele (meu Avô) sempre dizia para nós, os netos, para que nunca esquecêssemos: “esse moinho nunca vai precisar do vento, mas da força humana.”
Lembro que era naquele moinho, que meu avô também triturava breu para garantir a durabilidade e a rodagem da roldana do carro-de-boi para moer a mandioca nas farinhadas. Lembro também, que, quando meu Avô faleceu, minha Avó teve a ideia de vestir o moinho com panos de sacos e enterrá-lo junto com meu Avô.
Minha Avó tinha essas atitudes incomuns. Minha mãe dizia que minha Avó carregava aquelas atitudes consigo, afirmando que tudo ela aprendera com os antepassados indígenas. Fez isso mesmo, quando um bode velho “Pai do Chiqueiro” morreu. Como não fora morto pela mão humana, ela entendia que não érea aconselhável comer o bode – sequer usar o couro, pois enterrava com tudo. Quando o bode velho morreu, junto, ela enterrou um chocalho grande, amarelo. Só aquele bode carregava aquele chocalho. Era como se fosse uma coroa de rei.
O vento sem ser do moinho mostrando que existe
Eis, finalmente, que eu vi o vento. Vi. Juro que vi e ele demonstrava estar zangado – por quais motivos um certo Don Quixote poderia imaginar que ele, o vento, dependia de algum moinho?
Ele, o vento, estava ali. Poeticamente visível e até podendo ser pego.
Quando estivermos em meio a uma ventania, caminhando contra o vento à procura de algum moinho, se colocarmos as mãos no nosso rosto, poderemos “sentir” o vento. Poderemos até pegá-lo.
O vento existe, sim. Nasceu muito antes dos moinhos encontrados por Don Quixote. O vento é. É, e pronto. Há até quem algum dia pretendesse “ensacar o vento” – e o vento é “ensacável”, sim!
Ora, o que fica minutos, horas ou dias guardado dentro de um “balão” daqueles que servem para decorar festas?
Não é o vento? Então!
O vento é bom. É o vento que mantém a lavareda e queima o carvão da churrasqueira. É o vento que leva os balões multicoloridos em passeios da Capadócia – não fosse o favor do vento, não adiantaria a queima do gás que impulsiona o balão. É o vento que o mantém no alto.
É o vento que “tange” a nossa vida, que leva para distante as aleivosias ou as vicissitudes de cada um de nós.
O moinho e seu “catavento” não seriam o que são, se não fosse o vento. Vento é vida. Vento impulsiona as correntes marinhas e cria as ondas. Vento acende e apaga fogo.
E, finalmente, é o vento quem carrega desde muito longe o som que emoldura nossas vidas.